quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

São Paulo, 09 de dezembro, Pequeno conto.


O homem entra na terceira porta à esquerda, em primeira pessoa:
- Estive cansado. Estive com dores na estrutura. Os dentes estiveram a doer. Estive a abrir os olhos na rua escura. Estive a lavar o rosto pela manhã com o rio cansado de pés sujos. Estive muitos anos sem saber que sou todos.

O homem fecha a porta e senta-se na beira da cama da velha, também em primeira pessoa:
- Aos cinqüenta, falo sem parar, ouço sem freios, olho tudo, toco tudo, porque estou no nascimento primitivo, sem refinações europeias.

A velha, ainda deitada, levanta um dedo e diz, em segunda pessoa:
- Tu és quase um rude diante dos que têm mulheres oficiais, casas na praia, bons cargos, repuxes nas peles, distrações.

(Será uma acusação? – pergunta uma voz vinda de fora do texto. Parece não caber naquele corpo que a voz forasteira está a imaginar. – constata o escritor.)

O homem levanta-se e vai até a janela, olha o marceneiro a serrar mogno, em terceira pessoa:
- Pode parecer ressentimento, mas confesso que é sentimento. (Silêncio). Ele sente apenas.

A velha solta os olhos na direção do homem, estão em duas pessoas:
- Não há nada bonito?
- Tudo isto é. Encostei o corpo no mundo e por isso sinto.

A velha vira-se de lado e olha a parede (continuam em duas pessoas):
- Sei.
- Quanto menos eu sei, abraço melhor.

A velha suspira fundo e diz o pressentimento _________________________________.
- Falta pouco para o desmanche da (minha) carne.

O homem corre até a cama e vira a velha em sua direção:
- Este é o ponto: matar este que está nascendo. Este é o ponto. Morrer é desmanchar o que está nascendo, por isso quero escrever este livro. Espere. Você precisa estar nesta cama. Quero que você veja o nascer dos filhos, quero ensinar e ser amado. Quero ser lembrado. Por este que está nascendo com sangue e fúria, não deixe este mundo.

A velha abre o sorriso calmo de toda a vida. Conta uma história:
- Quem sabe os dias sejam apenas para deitar sobre uma pedra e deixá-la flutuar como nos desenhos que você fazia nos azulejos da casa amarela.




O homem dá um beijo na testa da velha, em primeira pessoa, olha o que ela faz, em segunda pessoa, e a deixa... (a morrer de saudade da sua infância, em terceira pessoa). 

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Palavra caída

Tirocínio de derrubar palavras.
O João cavou o poço até os olhos
abrirem-se para o Dentro.
Do buraco caíam velhas peles
de raposas vestidas de cordeiro.
-(Não o do Deus) - disseram os parênteses.
As palavras lavavam-se no jorro da água
e João não vinhava dúvidas.
Uma delas, ergueu-se, ainda caída,
apoiando um filho que passava pelos braços do João
e fincou os pés no sentido.
Por ali, andam dizendo (hoje) que este foi
o exercício do João:
- Crescer até o amanhã e não esquecer de riscar o fósforo
quando falar for palha.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Os homens alimentam-se, sobretudo, de vibração.
Nem todo real produz.
Alguns, são tomates enfiados na terra brotando nas dobras do tempo.
Ontem, virei a esquina:
lá estavam dois homens,
um domínio
uma mulher
e o amor.
por lá também passaram todos os entes que tocaram seus quimonos no infinito passado.
eu orei hoje pela manhã,
agradecendo.
E, com vergonha vos digo:
fiz pedidos (...)
o primeiro:
que eu consiga ser alimento e boca.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

escuta

O homem estava a sair de casa para mais um dia de trabalho:
- "Bom trabalho, SSSSSSEEEEEEUUUUUU Júlio". - foi como escutou.

A mulher era negra e estava em pé sobre os ombros de outra negra, de outra negra, de uma negra mais negra que ela, de outra que usava manto, de outra que usava farrapos, de outra nua, de outra vestida como rainha.

Escutei (ou foi o homem que estou a criar? - ato falho!) um som de corrente sendo puxada em ruas feitas com paralelepípedos.

A negra, de ancestralidade enraizada, dizia agora:
- "Seu".

Eu era meu? E ela não era dela? - pensou o homem arrancando uma espinha no canto do nariz.

O "seu" que a língua obriga a dizer é possessivo.
Duzentos anos depois de Iaiá assinar a missiva, o homem não sabia como continuar o dia.

Será que o homem pertencia mesmo a si mesmo?

(pensou nos grilos dentro de gavetas que deixam amarelar papéis até que digam "sois grileiro")

Mão-ciparam a terra.
- Há uma mão sobre a negra. - pensei ou pensou.

O homem foi até o armário de remédios e não encontrou nenhuma droga que amenizasse a sujeição forçada a seus semelhantes.

Não há mais nada a fazer
Senão:
e-mão-cipar a língua de tamanha violência.


quinta-feira, 30 de agosto de 2012

pontos de fuga

I
a alma não pensa sem imagem

II
trabalhar cansa

III
quando a inteligência não está à vontade, toda a alma está doente

IV
trabalhar com os problemas técnicos é procurar meios para um fim já suposto

V
a vontade delibera uma orientação: sempre

VI
liberdade (se existe) é deixar para os vermes a propaganda e a necessidade obsessiva de influenciar o mundo, as coisas, a natureza e as pessoas com a nossa opinião.



caminhos deste texto:

A. alma como ânima ou movimento das emoções, alguma coisa que é animada.

B. Simone Weil deu-me a mão hoje pela manhã, caminhamos pelo parque perto de casa. Ela estava com o corpo sujo de terra.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Tradução 1

O mistério não tem dois extremos:
tem um.
O único extremo do mistério está no centro
do nosso próprio coração.

Porém,
não deixaremos nunca de buscar o outro extremo,
o extremo que não existe.

(minha própria língua traindo a poesia vertical de Roberto Juarroz)

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Roubos

Hoje pela manhã, li o jornal da Folha de minha cidade. (Nome de Apóstolo que virou Santo - veja a perturbação).

Na coluna dos homens sábios, que falavam do cotidiano, havia um que dizia sua pendência para a direita política. Lá encontrei tantas certezas que no mesmo instante, roubei:
- O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas e as pessoas idiotas estão cheias de certezas.

Depois pensei numa mulher que foi um dia criança:
- Eu só comia beterraba porque meu pai dizia que era batom.

Empunhei uma arma e saí pelos livros roubando:
- Não mudaremos a vida, se não mudarmos de vida.

Fechei o jornal e chorei palavras enquanto tomava banho para iniciar mais um dia:
- Ler é escrever no caminhar da escrita.

Depois do banho, a comunidade do guardador de rebanhos, trazia a lista dos roubados:

Henry Charles Bukowski Jr.
José Saramago
Jaime Rocha

eram todos de esquerda.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Os Sete Desaforismos - Nova Temporada

I
O canto do galo é mais forte quanto mais perto estamos de ontem.

II
Os corredores não foram feitos para correr, mas para secular passagem.

III
O cachorro rasgando o saco lembra que sempre resta alguma coisa.

IV
O ralo de vez em quando rompe o cheiro mais humano.

V
O mundo não está nem violento, nem não-violento: nós dizemos e ele é.

VI
A alma cresce com esbarrões: um jovem que caminha apressado e esbarra na lentidão de um velho sentado.

VII
Toda vez que você desconfia de uma crítica há algo lá no fundo que diz que pode ser mesmo.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

- Certas pessoas, afeitas por números que falam, dizem que o oito nasceu com poder quando deitado com a barriga no chão.

1
Um vulto apareceu atrás do homem escuro.

2
Na manhã de 09 de janeiro Antonio acordou pondo o pé sobre a gaiola.

3
Na sequência daquela rua havia uma pinça rasgando a corrente.

4
Natanael escovava os dentes no sempre da pia.

5
A criança empinava saudade com linha de raciocínio.

6
Nunca mordeu uma banana sem pensar na manhã debaixo da mesa da cozinha.

7
O cano furado espirrava lembrança dos cadernos de memórias.

8
João calçava sandálias até em dia de carregar tijolos na cabeça.




A fome roncava a barriga do Cristo, mesmo tendo comido tortas de maçã.


Ninguém sabia se aquilo cuspiu o vivido ou o sonhado. Os dedos mostravam calo de escrita, agora era certo que o trabalho havia desgastado os ladrilhos da casa térrea.

terça-feira, 19 de junho de 2012

O artesão e a sua ferramenta

Talvez toda a escuta venha do silêncio.

Para constatar esta intuição é preciso estar à mercê do silêncio.
“Mas como?” pergunta um leitor inquieto.
“Estar à mercê é ter técnica, no sentido de atribuir sentido ao que se faz, concatenando cada parte no grande eixo do chão de cada um” – disse o ator.

Um quesito precípuo: atenção.

Como disse a filósofa Simone Weill:
“a atenção é uma alta forma de generosidade”.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Sopro vindo do Oriente

O que é que se espera de um compromisso assumido? Consigo ou com o outro? Tanto faz. O que se espera, o que se tem esperança: missa, missão, prece. Se apressado pressou a escolha de alguma coisa descolada o reverso virá em breve cobrar-lhe que devolva. Agora se em prece comunga comigo ou consigo ou convosco ou conosco aquilo que de fato deve ser feito, agora o que se deve ao ato é cumpri-lo.


Deixa a carne atravessar-se por certo esforço de manter-se atento sem vacilo do primeiro instante até o último. Deixa o prazer em química escorrer sobre o ato de se ser consistente do princípio ao fim naquilo que missou cumprir. Se sabe que em tudo há dor e prazer não precisa ficar o tempo todo acovardando-se a separar gesto de gemido. Tudo é junto quando se está presente em prece na única coisa que se pode fazer: dizer sim ao sim que se jurou ao agora, no tempo em que justo era dizer o não de outrora.
Uma mulher vestida de camisa branca, calça branca, sapato branco, de idade vivida e com os cabelos presos, dizia na saída da estação:
- Eu disse para o professor que não sabia o conceito, mas que sabia dar um exemplo.
Certa feita ouviu-se de um professor na Universidade:
- Quem fica dando exemplo não pensa com rigor.
Os homens conversavam em volta da fogueira:
- O intervalo entre fazer o pão e ditar a receita.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

a mulher enterra o cabelo na terra_________________________________________
implantação ou implementação
P.S. não havia pós-escrito

terça-feira, 12 de junho de 2012

Palavras que me nomeiam

Todas as palavras me nomeiam quando eu sei escutá-las.
Agora devo aprender a dizê-las para que outros
se sintam nomeados acaso as escutem.
Para nomear um nome é preciso todas as palavras.
E agora,
é a minha vez de continuar a cerimônia.
(Roberto Juarroz)

Retrato em cinco partes: um estudo iconológico da fome

1.
Re é sempre "outra vez": por vezes novo, por vezes repetição.
2.
Trato é sempre estética, pois refere-se à forma.
3.
Cena é uma paisagem vista da janela. Algumas pessoas encarnadas como artistas, vagabundos ou loucos, abrem a porta e correm descalços.
4.
A mulher come algo quente uma vez ao dia
ou,
escova os dentes do destino, visto que
suas mordidas insistem em sulcar o rosto.
- Duas outras observações:
A.
B.
Retórica.
Obs: O termo "tórica" provém da palavra grega torus que significa barril. Aqui cabe pensar no Re da palavra, por sugestão de Luiza Christov.
5.
Os homens tornam-se humanos quando conjugam o verbo finitar: Estar afinado com a tristeza, pelo tom da quietude.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Na manhã de 11 de março (lugar que nunca se explicou) o carpinteiro jogou coentro na bacia e foi-se. Quando todos levantaram-se de suas mansardas e não-mansardas, molharam os pés no chão, descalço de tempo.
Hoje, oito anos depois do acontecido, João telefonou em minha casa e falou sobre os poetas, os filósofos e os médicos.
Disse-me:
- Pegamos o caminho de Parmênides de Eleia. Você imagina o que poderia ter acontecido se tivéssemos botado trabalho nas bacias-de-verdes-ramos?
Parmênides ensinou duas vias: a da Verdade e a das Opiniões dos Mortais.
Zenão continuou o pensamento de Parmênides e hoje o carpiteiro tem vergonha de dizer suas bacias.
A noite, quando todos os bancos terminam o expediente e os seus cofres são trancados pela fome, João abre a porta de casa, chama um ou dois conhecidos e juntos, com as mãos em oração, cosem o princípio.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

(dois conversam sem pontuações, sentados na pedra)
Um - Tudo bem
Dois - Tudo
Um - Que dia
Dois - Que dia
Um - É
Dois - É mesmo
Um - Difícil, não é
Dois - Difícil
Um - Nada, e você
Dois - Também não
Um - Pois é
Dois - Não é
Um - E eles, por onde andam
Dois - Nunca mais os vi
Um - Segunda-feira eu vou
Dois - Puxa, na segunda para mim é impossível
Um - Uma hora dá certo
Dois - Claro
Um - E você
Dois - O que é que tem
Um - Nada
(Um continua o caminho de dizer, dois acaba de escutar alguma coisa e fica ali, parado em si. O que dois ouviu fez com que o escritor deixasse de dialogar as falas destas personagens que nasciam, roubado que foi por uma digressão).
"E você" foi uma voz vinda de outro lugar para lembrá-lo de que ali havia alguém que falava e alguém que ouvia. Sempre somos lembrados que conversar é dizer algo até a borda da escuta.
Quando não se dá atenção ao chamado, nascido no interior da conversa, entra-se no dizer apertado que espana o encontro.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

"Educar é parar diante das profecias de fracasso e dizer: não". palavras ex-postas por uma educadora argentina
Diante do posto:
emancipa-se quem está tratando da própria emancipação.
Lá, naquela aldeia, moravam dois franceses: Jacotot e Rancière; Rancière era mais caladão, gostava mesmo de escrever. Jacotot era dado à exposição do verbo, e vez ou outra pedia uma xícara-de-futuro à Graciela.
Foi ela quem lembrou a todos, no dia da grande chuva de sapos, que emancipar é tirar a mão opressora de cima de nossa cabeça.
P.S.
Joseph Jacotot
Jacques Rancière
Graciela Frigerio
Angela Castelo Branco
Juliana Jardim
Luiza Christov
Gonçalo M. Tavares
Jorge Larrosa

quarta-feira, 30 de maio de 2012

"Solte a criança interior!" - disse uma velha maquiada que "ensinava" sobre a vida.
Enxugando as lágrimas no guardanapo de limpar saudade, a mulher que participava do work-véu respondeu em transe:
- Sim, sim. Voltei a ser criança.
- Impossível. - Gritou o filósofo, fumando um cachimbo de preto velho. E depois riu até o amanhecer.
Lá, uma voz soou até o hoje.
A vida cresce. Há quem foi criança. Há quem adolesceu. Há quem ficou adulto. Talvez não seja mais possível ser criança.Talvez seja vital tornarmo-nos adultos. Talvez só seja possível a exposição total quando chegarmos à vestimenta de autoridade, pele mais grossa. Talvez quando estivermos na palavra autoridade como autoria, como gesto que nasce da proximidade que temos com nós mesmos. Talvez assim possamos gargalhar até o amanhecer.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Ali.
Um lugar que todos sabem onde fica,
mesmo que indefinível.
Lá.
Um lugar que todos sabem que fica mais longe do que Ali.
Aqui.
Um lugar que todos sabem que fica bem mais perto do que Lá.
Vamos entendendo os limites entre o Ali, o Lá e o Aqui bebendo água com as mãos em forma de cuia, correndo para não perder o ônibus, despedindo-se daquela pessoa no terminal rodoviário, esquecendo o RG em casa na hora de comprar as passagens daquela viagem, cutucando a espinha das costas amadas.
Talvez seja o limite o maior aprendizado da vida.
Talvez seja o limite a maior liberdade da vida.
Talvez seja o limite a habilidade que todos adquirem para dançar Ali, Lá e Aqui como se houvesse o sempre.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

O homem bateu o sono como bife em tábua de madeira.
De noite escorreu a pérola para dentro da concha.
Guardadas as proporções padres procuram prisões
para guardarem-se do frio.
Ninguém sabe ao certo.
Escutou-se na madrugada:
- Procura na manhã o que a noite anda escondendo.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Os Cinco Desaforismos - Parte I

Aforismo Aforismo (do grego aphorismos "definição", a partir de aphorizein "delimitar, separar", de apó- "afastado, separado" ou "proveniente, derivado de" + horos, "fronteira, limite" e horizein "limitar", através do latim aphorismus[1]) é uma sentença concisa, que geralmente encerra um preceito moral.
Desaforismos No plural. Tentativa de encerrar um preceito moral sem encerrar.
I
O meio pode fazer o homem ao meio.
II
Renunciar à verdade e assumir o verdadeiro
pode ser desdizer a dita cuja palavra dita.
III
Um mandato é a relação entre palavra e coisa
tipo onça dando o bote ou mulher arrumando malas.
IV
Caminhar a noite depois do trabalho e alcançar
o "onde" a coisa quer levar a gente:
pode ser criação.
V
A voz rouca é a renúncia da falação.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O amor é simples.
Destas coisas que demoram muito para criançar o verbo.
Escuta-se o avô dizendo:
- Devolva o meu chapéu.
E nenhuma criança duvida da verdade de voltar-se ao velho.
Outro menino pergunta:
- Mãe você está brigando com o pai?
Ao que se ouve:
- Estamos na conversa.
O menino não sabe dizer se o que se sente seja:
O que se ouve dos que dizem serem simples ou o que se sente naquilo que se escuta.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Não adiantava frear.
As palavras vinham em paródia,
em paráfrase,
em estado de cópia.
O poeta gritava:
- Pare imediatamente com isto: é meu o poema.
Nada fazia o rio voltar-se para atrás:
revoltado os dedos do escritor-copista caminhava numa velocidade
impossível de acompanhá-la com os pensamentos de dentro.
Os dedos agora pensavam de maneira emancipada da cabeça
e daí foram logo dizendo:
Dentro do pasto tinha uma vaca.
Tinha uma vaca dentro do pasto.
Tinha uma vaca
Dentro do pasto tinha uma vaca.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que dentro do pasto
Tinha uma vaca
Tinha uma vaca dentro do pasto
Dentro do pasto tinha uma vaca.
A vaca de dentro.
Disseram ao homem:
- Larga a mão de olhar para o pasto. Veja o espaço.
O homem achou aquilo frustrante, e sentiu raiva.
O resmungo dava a mão ao passado infantil:
- Não pode.
Depois de dias e noites, o homem chegou ao espaço.
De lá, viu a cerca da vaca e pensou:
- A revolta é tudo aquilo que faz a gente voltar para isto que nos faz paralisar.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Hoje, Sueli não quis conversar.
O homem não entendeu.
Todos que por ali passavam diziam:
- Transbordou.
Sueli tinha bordas.
Bordou até a linha do tempo, até a linha do pensamento, até a linha de pesquisa, até a linha da agulha mesmo. Outro dia, disseram para o escritor que Sueli é nada mais do que um chão como outro qualquer.
- Sabe, cada um tem seu chão, porque senão não agüenta: morre.
O antônimo de chão é abismo.
O escritor ficou abismado com aquela queda e quebrou a palavra.
(tempo despencando de si)
Estes dois pontos depois da frase, é a coisa que a frase quis dizer, não é a moral da história.
Na tentativa de explicar-se para si mesmo o narrador diz:
(vale lembrar que os dois pontos aqui precede os três aprendizados do escritor acerca dos dois pontos)
O escritor acreditava que os dois pontos em geral, ou evocam a fala de alguém ou significam dito de outro modo aquilo que a frase já dizia.
O escritor aprendeu que os dois pontos não têm nada a ver com o que sempre acreditou.
O escritor aprendeu que os dois pontos são o que a palavra tenta dizer e não consegue e que só com os dois pontos ela desembesta a dizer alguma coisa.
Morre, neste caso.
Voltando a Sueli, para não deixá-la abandonada aos delírios filosóficos:
Todos têm chão, mesmo os que consideramos mais limitados ou os que são restritos aos nossos olhos.
Todos estão articulados em alguma rede de sentidos que os fazem mais ou menos potentes em relação a tudo que de fato podem.
Este de fato da oração: vai saber o que é.
A pergunta do homem agora era:
- Será que enquanto escrevo sobre Sueli estou no tudo que posso?

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Palavras delirantes: Abismado.

Antonio entrou no Cômodo e abismou-se com o princípio:
Gustavo Courbet - A Origem do Mundo,1866.
Ficou entre o Vale e o Silício: a Beleza sem rosto cedeu os fundamentos de Antonio.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A vizinha era velha, latia com o cachorro, viuvava-se diariamente do marido de vida-toda doente.
Hoje, a velha, gritava para quem quisesse ouvir:
- Tudo depende de você, da sua consciência.
O escritor ficou no canto da sala, escondido de sua consciência, a pensar:
- Que voz é esta que nos atrapalha tanto, insistindo em dizer que depende de um "eu" se vai chover ou se morreremos amanhã.
Deitou-se na máquina de escrever e rezou-em-letras a sua fé:
- Uma voz vinda de outro lugar: é A falta de nossos tempos.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Fecharam a marcenaria por falta de desplanejamento. Era tudo sob medida. O marceneiro saiu de casa e entrou na sala de máquinas a catar grãos-de-saudade. Quando olhou para o lado viu a mulher que fiava espera. Enquanto a mulher enrolava o fio no grande-rolo-do-tempo, uma outra tecia palavras-de-juntar. Era quente a casa de máquinas, por isto a mulher tratou logo de coser roupa fresca. O homem voltou a serrar cabides e a pendurar suas certezas no guarda-medos. Agora, percebido pela mulher-mãe-do-mundo, estava vestido para a festa. O pó de serragem voltava a exalar pé-na-estrada.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

De dentro da fronha do travesseiro saía a anágua da saia de uma sabedoria perdida:
- Se pudermos ver o outro apenas do ponto de vista de nossa humanidade compartilhada, perceberemos que buscamos o mesmo propósito.
Lá os alfinetes perdiam a cabeça e as matracas calavam-se em louvor ao Louva-Deus.
João desceu do cavalo e leu em voz alta:
- A única coisa de semelhante que temos, meus caros, é a nossa fome e a certeza de que o tempo corre para lá e para aquilo que não se vê.
Todos aplaudiram os dias e as noites que aconteceram a partir daquele gesto.
Escrever era dizer o que passava pelo corpo.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Aforismos

I
Amar é o encontro com alguém que o reintroduza à solidão.
II
Sê aventureiro do espírito, entrai em sua viagem própria.
III
O erro mais grave na jornada é a ignorância à própria solidão.
IV
Estar em contato com a solidão fundamental é abandonar os usos da língua.
V
Não há duas órbitas semelhantes.
VI
Amar é cansar-se de estar só para poder ser devolvido à sua solidão primeira.
VII
Os que amam continuam a ser solitários.
VIII
Ninguém ensina a solidão.
IX
Sonho e solidão podem se encontrar.
X
Silenciar os murmúrios das palavras para ouvi-las desde dentro.
XI
Conquistar o direito de aprender a morrer.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Duas palavras no infinitivo-de-brotar saíam da boca do lobo:
Sonhar
Lugar onde a Lei não tem começo, meio e fim.
Despertar
Lugar onde ter posição é deixar-se não ser submetido pela Lei com começo, meio e fim.
No bosque, a menina encantada com a narrativa, deixou seu estilete cair:
- Nunca mais cortou o real.
Explicações subjetivas das motivações escriturárias destes escritos:
Estilete = objeto cuneiforme que corta o real de cada ser terrestre; aquilo que dá estilo ao ser terrestre; aquilo que arranca o ser terrestre da submissão do céu e transporta (metáfora) para o sonhar e para o despertar; aquilo que o emancipa da Lei do começo, do meio e do fim.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Poema infanto-imperfeito

Na cozinha, a mãe carpia o mato da tradição.
Na sala, o pai cozinhava o sonho da mutação.
No quarto o menino lixava a imaginação.
Todos cantavam de madrugada
E de dia tinham a casa alugada.
Os inquilinos, de tempos outros, eram sombras
Ocupavam a casa de sol a sol com suas obras.
Na noite voltavam para a sua própria morada
Lá onde só se podia ser quando não se era nada.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

causos de palavra

I
O homem comia um prato com arroz enquanto contava um medo:
- Nossa. Fugiu a palavra.
Nenhuma coisa É onde a palavra foge.
II
A mulher esperava o ônibus, quando perguntou:
- Escuta, aqui passa o "carinho"?
Tudo depende se damos passagem ou se recusamos este algo que nunca foi dito.
III
A criança brincava na poça, depois da tromba d´água:
- Deus chora?
É a linguagem passando de raspão.
IV
A velha dizia ao velho, enquanto assistiam à televisão:
- As pintas de minha mão escondem aquela que talvez tenha sido.
Poesia é a experiência com a linguagem.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Hoje, o homem de chapéu de lã puído, resolveu catar as folhas do chão. Enquanto abaixava-se para os restos que as árvores deixavam de si no mundo, o homem viu que aquilo não era causalidade. Tudo deixava restos. A questão era saber a moral dos restos. O homem já não tinha a mesma desenvoltura de catar depois que começou a pensar dentro da alma dos restos. Estaria o chapéu de lã quase-resto sonhando o homem? Ou eram as árvores a despertar o homem de seu resto de vida? O que todos sabiam era que o chão não estava a dormir o resto de sono que lhe sobrava. A copa estava delgada de restos de folhas por cair. O homem aprendeu do todo da árvore o que ela sabia e o que ela não sabia. Estava a escalar a sua própria insignificância ao dar simpatia aos restos.

terça-feira, 17 de abril de 2012

A mulher de nariz grande olhava o cachorro defecando no quintal:
- Amar é cansar-se de estar só.

O homem de jaleco marrom tinha um cortador de unhas enguiçado:
- O mundo da letra é a invenção de um mundo de solidão.

A criança com os pés-duro de asfalto quente tinha um nariz que escorria:
- Leitura e escrita são caminhos para a interioridade.

A velha cozinhava brócolis na panela de pressão enquanto ouvia o rádio AM:
- Sou um só como todos e como todos sou um só.

O velho acumulava papéis na gaveta da cômoda do quarto, em disputa com as toalhas bordadas pela mulher:
- Os que amam continuam solitários.

Nossa Senhora ficou muda desde que acenderam a luz do quarto escuro. O oco que era da santa ficou dentro daquela criança sentada no canto do mundo.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Os Sete Desaforismos XI

I

Nenhuma coisa É ali onde falta a palavra.

II

Tudo depende do que pensamos-sentimos
a partir do que dizem as palavras que dizemos.

III

A presença das coisas vem da ausência.

IV

Quando alguém sai e bate a porta
ganhamos a chance de pensar o presente.

V

O que importa mesmo é o começo de uma conversa.

VI

Não há pensamento enquanto não se sente o que se escreve, ou
não se escreve o que se sente.

VII

A dobra num livro é a ruga no rosto
de um velho que nunca esquece daquele dia.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Um homem comia bichinhos-da-goiaba através do fruto.
Ontem conversei com o pai do escritor.
Ele dizia:
- estou aflito, porque em breve vou encontrar-me com aquilo que está antes da morte.
O escritor não sabia o que o pai queria dizer ao que o pai respondeu-lhe:
- não quero dizer nada, estou dizendo já.
O pai tinha as pernas parecendo troncos velhos de árvores e seus cabelos eram longos, suas unhas estavam grandes e seu rosto sulcado pelo tempo.
O escritor guardava o ar que arranhava palavras enquanto olhava o pai.
Um dragão de comodo apareceu bem na hora de dizer:
- eu te amo meu pai.
E todos só tinham olhos para o rabo do bicho.
O pai não tinha medo, parecia que ele tinha entendido algo do mistério - que por ser da ordem do mistério não pode entrar na ordem do desmistério.
Ainda com os olhos virados para a criatura que tinha surgido - sabe-se lá de onde - o pai continuava a escrever no escritor:
- guarda suas certezas e não luta com o que te faz mal, o melhor é não resistir ao que te faz mal, vira as costas e deixa que a coisa se devolva pra si o que de mal ela guarda para o mundo.
Nesta hora apareceram por ali morcegos herbívoros. Eles gostam das goiabas que ficam dentadas de noite para o dia habitá-las de bichinhos.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Dito de outro modo: Conversão

Certas gentes têm crenças. Outras tantas dizem sem ter.

Este "dizem sem ter" é proposital na oração. Quando o escritor ora aqui na frase, procura torcer a substância do verbo até a possessão do adjetivo.

Voltemos às "certas gentes" que têm crenças.
- São elas os sujeitos desta oração. - pensou o escritor digitando as letras.

Quando estas gentes encontram aquelas que "dizem sem ter", invocam-se tanto com este dizer-sem-ter que querem tornar o outro um ser-no-por-vir-da-salvação, sabem que converter este outro é também salvar-se a si próprio.

(O teólogo abriu o livro à direita do escritor e leu:)
- Dai ao crente esperança e temor e expandirá o rebanho.

(O escritor pede que o teólogo espere do lado de fora do gabinete para que ele termine a escrita iniciada por "certas gentes...".)

Pois bem, neste impulso de salvação - simplesmente porque pode ser que todos, demasiado todos, estejamos bem perdidos - que se apresenta a encruzilhada mais-de-beleza da conversão.

É possível que lá, onde queda a morada-da-fé, as gentes possam criar uma nova versão de si.
No ato de salvar o outro elas podem se deparar realmente com a sua perdição, pode ser que lá, elas possam verter o que nunca haviam vertido, como quem fura petróleo no deserto e sangra tão fundo, mais tão fundo, como um sangue-negro-da-comunhão.

Uma versão de si que se dá com o outro, no encontro da perdição.

Converter pode ser visto aqui como verter um outro de si com o outro-do-outro que com você também verte um outro de si.

Só assim a conversão pode ser o encontro-com-a-fé: a certeza de que nós carregamos, para além de filões de peles, camadas-de-outros-nós-a-serem-desfeitos-por-nós.

terça-feira, 10 de abril de 2012

O escritor escutou de um Millôr Fernandes de 1989:
- Uma vez me perguntaram por que homens e mulheres se expressam tanto com a palavra e tão pouco com o desenho, com a música. Foi o que respondi: são cinco bilhões falando do momento que acordam até a hora de dormir. Dá para entender?

Esta frase estava na lembrança do escritor, escorreu até os dedos, foi o que pensou:
- Será que quando a gente guarda uma lembrança, mesmo esta à época do muro que ruía, será que estamos escrevendo algum texto dentro de nós?

Daquela lembrança-pergunta, de singela e ingênua, cavou um poço:
- Nós pensamos ou somos pensados?

Ele não parava, não conseguia descansar os dedos.
Então, preparou uma cumbuca com água quente e pôs os dedos a dançar naquela poça:
- O que fiz com a frase de Millôr foi roubo, cópia, plágio, citação ou autoria.

Sem saber. Digitou o que pensava e ainda pensou:
- Seria mais feliz se ao invés de "digitou" tivesse escrito "desenhou", mas isto não seria verosímil.

sábado, 7 de abril de 2012

SMS - 15 anos ou poemas da existência de um jovem

1 ano

Que o poema rompa diante de ti entre vistas que se veem como o ar para o balão.

2 anos

A indiferença causa a maior das dores.

3 anos

Saudade que aperta e dilata o existir.

4 anos

Uma noite. Mais um deus tentou encostar a cabeça no silêncio. Que a gente tenha força de estar presente na espera de agora.

5 anos

Sentindo seu cheiro abrindo costelas. Repente de susto. Ar quente no céu da boca.

6 anos

O dia nasceu com uma pergunta: o que pode ser tão partilhado numa vida a dois como foi andar de balão? O dia caminha pelo parque com contundência e entrega. Também quero escorrer assim. Me acompanha?

7 anos

O homem entrou na sala e viu uma bacia-de-pés-de-terra. Do outro lado re-parou no buraco enquanto beijava a boca da mulher. O homem percebeu o desejo crescendo. A mulher fechou os olhos e o homem virou de lado. Enquanto espera a abertura dos olhos o homem olha para a escada e se pergunta: ela está subindo ou descendo?

8 anos

Um dia amanheço ostra, no outro desperto leão. Tenciono a língua no mundo, afrouxo os lábios ao navegar. Viajante-mulher, peguemos o remo, o mar está bravio, mas nossas pernas sabem boiar.

9 anos

Dia que começa dentro é dia inteiro por fora.

10 anos

Saudade feita de alma e osso.

11 anos

Daqui, do vento que sopra, a direção do hoje. Sinto gosto de assoalho encerado nas partilhas. O sopro responde na direção do abraço.

12 anos

O peito às vezes tem que se dilatar para caber a saudade.

13 anos

O coração do contador de histórias sai pela boca.

14 anos

O cheiro de ontem ocupa cada canto da casa. A casa ocupa cada canto de mim. Canto.

15 anos

Estava apertado. Escrevi. Agora tudo tem cabimento.
Hoje o homem caído entendeu sua queda:
- Manobra usada em reuniões, discussões ou plenários, que consiste em recorrer a artimanhas, a fim de prejudicar a discussão de um ponto, para evitar sua aprovação, forçar um adiamento.

É isto que vivemos quando não falamos sobre aquilo que nos salvaria do silêncio sofrido.
Do alto uma voz:
- Diversionismo.
Ninguém quer falar sobre as coisas nas mesas dos bares, nos bancos dos trens, nas carteiras das escolas, nas salas dos professores, no canal cultural da tv, nas filas dos bancos, nas mesas das casas de pais e filhos.
Hoje aprendemos a tática.
O deus dos dias que vivemos: tática diversionista.


Um pássaro azul e amarelo dita as regras políticas da Ágora que insiste em adiar o dito de agora.

Felizmente há os loucos que insistem em voltar ao assunto.
Assunta é uma mulher com ideias de papelão que gosta mesmo de nos lembrar:
- Não fuja do dito, maldito.
Depois continua sua peregrinação em busca das palavras que possam cicatrizar tamanho abandono.
Abonaram os dias de razão e deixaram Assunta à sorte, hoje todos os "táticos" estão se divertindo, é dia do Senhor Morto e as águas do mar estão impróprias para banho, não sei se dormem bem ou se rangem os dentes: isso é segredo das cabeças de cada um deles.
Só sei que não falaram quando tinham que dizer e Assunta continua dizendo e sendo acusada por eles - quando voltam para seus ofícios às segundas - de que ela não sabe o que diz.
E ela grita. Quem sabe termine o luto de dois mil anos e retornemos à vida.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Numa conversa de ônibus, a mulher ouviu:
- O mundo já acabou, agora o que restam são as justificativas.

Na frente da escola dois outros diziam:
- Hoje pela manhã limpei meus preconceitos.
- Como foi?
- Fui a uma tourada e vi sete mortes: a primeira eu chorei, a segunda eu olhei, a terceira eu me olhei, a quarta eu parei, a quinta eu rezei, a sexta eu perdoei, a sétima eu senti.

Do outro lado da rua, a velha palavreava com outra:
- É um artista renomado.
- Renomado quer dizer que dizem muito seu nome?
- Não, renomado é que ele teve um nome um dia e hoje tem outro: tipo Fernanda Montenegro ser Arlete.
- Deve ser estranho ser alguém renomeado, não é?
- É acho que neste caso é renomeado e não renomado.
- É.
- Então, pode ser que renomado venha de nômade. Aquele que não tem onde viver depois que fica famoso.
- Pode.
- Quanta coisa uma palavra pode, não é?
- E a Lourdes, vai bem?

No centro do terreiro o velho falava em voz baixa:
- Incorporar é diferente de atrair. Incorporar é absorver com o corpo e atrair é não-trair. Às vezes incorporamos pessoas e às vezes atraímos pessoas. Às vezes incorporamos ideias, às vezes atraímos ideias.
Todos ficaram atraídos por aquele jeito de falar do velho.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Episódio 1

lá, longe da casa de número 1, os homens cantavam suas verdades
um dia, a mulher de cabelos longos foi chamada até a sala mais alta
lá, desfizeram suas tranças e esticaram seus cabelos
a mulher nunca mais soube o que era a verdade de seus cabelos.

Episódio 2

todos chupavam laranjas cerrando a casca com um estilete velho
as laranjas desapareceram dos pés de origem
carregavam caminhões pipa e davam linha para o céu
as máquinas de fazer sulco custam trezentos dinheiros em qualquer parte.

Episódio 3

naquele tempo todos por ali tinham o que dizer depois de cavar um poço
depois de uma tarde ensolarada e de um decreto governamental
os homens e mulheres taparam todos os buracos abertos pelos verbos
agora as palavras não tinham por onde sair, elas continuam a entrar

P.S. tem dia que dá a impressão que não cabe mais nada dentro da gente. disse o escritor cutucando o verbo.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Os Sete Desaforismos X

I

A escrita sofre quando não escreve.

II

O pior roubo da alma é a indiferença.

III

Saber cantar um texto até a última nota
pode ser dar atenção ao rodapé da casa.

IV

O aprendizado mais importante da vida é:
escrever o eu minúsculo sem sentir que está traindo a gramática.

V

Hoje é tempo de praticar o último dia
de todos os dias que se vai viver.

VI

Não esquecer de levar o coração
no dia do funeral da cabeça.

VII

Milagre é riscar um livro todos os dias
como quem escova os dentes para
não perder a mordida um dia.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

li isto em algum lugar: não há pensamento enquanto não escrevemos

Dicionário deste escrito

escrever é cortar a realidade
realidade é aquilo que estamos acostumados a ver
ver é saber que fazemos imagens sobre tudo o que escutamos e lemos, e quando conhecemos uma nos apegamos como única.

Dissertação

talvez seja preciso cortar a realidade
abrir uns buracos nas imagens
elas estão viciadas-de-dizer-sempre-o-mesmo
atingir o lugar-do-medo-real
lá usar o estilete que dá a cada um o seu estilo

ter estilo é isso: cortar a gola da camisa porque temos alergia no pescoço

ou ainda

chupar a mexerica no quintal
fazendo-se presente
o antes do compromisso.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Ouvir os sonhos

Haviam prateleiras na feira.
A mulher vendia galinhas enquanto gritava para todos ouvirem:
- Pahang.
O homem, virado de bruços, mordia os dentes sonolentos e rangidos.
A mulher continuava a venda na grande feira:
- Pahang, homem, pahang.
O homem olhava de olhos fechados para as prateleiras,
de livros.
O homem enxergava galinhas, muitas galinhas ao invés de livros.
A mulher continuava a "Grande Venda".
Talvez o homem, enquanto sonhava, arrancava
A grande venda dos dias ocupados.
Despertou no cacarejar daquelas palavras:
- Pahang, homem, pahang.

Fundo de cena: O homem estava sonhando. Sonhou que uma grande amiga vendia galinhas numa feira livre. As galinhas eram vendidas expostas em prateleiras de livros. A mulher dizia Pahang sem parar. O homem despertou e procurou nos dicionários universais a palavra. Lá encontrou:

Pahang - o maior Estado da Malásia; significa, entre outras coisas, Terra da Tranquilidade.

Ao ouvir o sonho o homem dormiu intranquilo-de-pensar: a vontade de interpretar a vida nos arranca da vida.

terça-feira, 27 de março de 2012

Os Sete Desaforismos IX

I

Há uma palavra que consola:
os mortos não acabam de vez.

II

A delicadeza e o cuidado
são descontinuidades da vida.

III

Tudo aquilo que não se regenera
geralmente se degenera.

IV

Há pessoas que quando dizem aliviam
e outras que corroem.

V

A tristeza é a língua da incompreensão.

VI

A certeza é um nível alto de alienação.

VII

Wagner compunha como uma vaca produzindo leite.

segunda-feira, 26 de março de 2012

O mal-estar da poesia

Tinham os corpo escondidos em cemitérios, hospitais, distantes dos olhos-de-ver


As Três Idades da Mulher (1905) - Gustav Klimt


Não queriam que a velhice encostasse na eternidade, então escondiam os corpos, e todos os imãs das geladeiras das casas, diziam apenas: como é poético nascer.



A velha do quadro, procurava abrigo em alguma casa, mas as portas estavam fechadas para o natural.


A poesia estava mal disposta na oração.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Navegar Meninos V

Naquele lugar, todas as pessoas, antes de dormir, davam boa noite às pessoas que amavam, olhavam para a lua e se deitavam em suas camas. Inclusive as crianças. Mas, naquele dia, a menina deu boa noite aos pais, olhou para a lua, deitou-se na cama e... depois de algum tempo-antes-do-sonhar, escutou, lá longe, muito longe, um som esquisito e novo. Blundundungloptoc. A menina ficou toda arrepiada e cobriu-se inteira, até a cabeça, com o lençol amarelo. E o som persistia. Blundundungloptoc. Sem saber o que fazer, a menina foi, lentamente, tirando o lençol da cabeça, mas não parava de ouvir aquele som. Blundundungloptoc. Olhou para os lados, e tudo estava escuro, ajoelhou-se devagar na cama e olhou, através da vidraça do quarto, a lua. A lua estava coberta por uma nuvem escura. Seria por isso que a noite era tão escura dentro do quarto? Acho que a menina pensou nisso. Mas o medo era tanto, mas tanto que resolveu sair do quarto. Correu na direção da porta e abriu-a devagarzinho, o ranger lento da porta parecia um lobo a uivar noites cheias. À porta, viu diante de si um corredor enorme que levava até a sala de estar, no meio do caminho ficava o quarto dos pais. Como estava muito escuro, a menina foi apoiando-se nas paredes agarrada ao lençol amarelo. Ela percebeu que a porta do quarto dos pais estava entreaberta e foi entrando, quando olhou para a cama toda arrumada, com almofadas coloridas: eles não estavam ali. A menina deu um grito de medo e correu para a sala em disparada. Quando lá chegou avistou, no meio da sala, uma caixa de papelão enorme. Era quase do tamanho da sala de estar. A caixa além de tudo era alta. Estariam seus pais fazendo uma surpresa? A menina subiu no sofá e nas pontas dos pés conseguiu alcançar a tampa da caixa. Com muita dificuldade abriu a caixa. Qual não foi a sua surpresa: de dentro da caixa saiu aquele som esquisito. Blundundungloptoc. Assustada, a menina caiu sentada no sofá. Olhou para os lados, chamou pelos pais, gritou para que a lua saísse detrás daquela nuvem escura e iluminasse o escuro do medo. Nada. A menina estava sozinha. Ela ficou sentada ali, com as pernas encolhidas e com as palmas das mãos apertadas no rosto. O tempo foi passando, passando. De repente: Sozinha? pensou, então eu tenho medo de quê? De quem?. E pensando, sentindo, o medo tornou-se curiosidade e a menina ficou em pé sobre o sofá, ficou na ponta dos pés e abriu a caixa para ver o que de fato havia lá. Um clarão, apenas um clarão. Naquele momento a menina sentiu um beijo na testa e um som suave que foi envolvendo-a por inteiro. Bom dia, meu bem. O sol está radiante. Era a mãe que chamava a menina para um tempo-depois-do-sonhar.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Dito de outro modo: ARTISTA

Transmissor da mitologia.

(escutei outro dia alguém falar de Blanchot, dizia: profeta é aquele que atualiza o real)

pensei: F5 no mundo contemporâneo.

Transmitir é emitir em trânsito, no movimento, não sabendo ainda a parada da verdade.

Dica: quando você encontrar um artista pela frente, mas um artista mesmo__________________

o que é um artista mesmo - perguntou o grilo que estava sobre a folha.

É aquele que te prende de verdade, sabe? Aquele que você se obriga a continuar...

Dica 2: quando você encontrar, por exemplo, uma literatura que o prenda de verdade, vá fundo neste cara que escreveu este troço, leia tudo dele, depois leia o que ele lê, pode ser que você tenha encontrado o Xamã do seu tempo.

Sem mistificações, intelectuais e céticos do meu mundo: o que estou dizendo é informática F5.

Atualizações.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Os Sete Desaforismos VIII

I

Prestar atenção na inflação de preposições
sem interesse algum.

II

As palavras dependem das bocas que as pronunciam.

III

A morte faz o corpo sofrer uma contradição:
o outro está e não está aqui.

IV

Quando rio entre lágrimas, o coração pode navegar
naquele mar.

V

Há sempre nas gentes um que continua a navegar
e um outro que está à deriva.

VI

Gostar mesmo de alguma coisa é tocá-la,
do contrário uma ideia te tocou.

VII

Só é possível comer uma carne assada com quem amamos
se o animal e o dinheiro forem anônimos.

terça-feira, 20 de março de 2012

Palavras Pisoteadas IV

Perdoar

Per = prefixo, do latim, que serve para dar ideia de plenitude.

Doar = doar mesmo.

Moral da história: abrir a caixa preta de um naufrágio estranho à humanidade (trancado há milênios) derreter o estanho que lacra o tesouro que salvaria muitos da fome, doar tudo o que há na caixa até o ponto do vazio da caixa flutuar no nível mais superficial do oceano, lá derivar sobre a caixa leve-de-si, sabendo que outros tantos poderão também trazer suas doações para salvá-lo de seus naufrágios.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Dito de outro modo: FÉ

O homem olha para a santa,
outro beija a ponta da flor
a mulher canta a pia
a velha escova a dentadura
a criança costura a poça



outra mulher faz tranças na filha que ainda não nasceu

outro homem escreve palavras no livro caixa


as crianças cutucam o abacate com vara curta

os velhos balançam a cadeira até o amanhecer

domingo, 18 de março de 2012

Os Sete Desaforismos VII

I

Ter um lugar na casa, de preferência térrea,
para esperar que as coisas se apresentem.

II

Não ser um colocador de conteúdo
nas formas que aparecem.

III

Quando alguma coisa te olhar,
piscar para ela e, no escuro do pisco distraído,
deixar-se envolver pela coisa.

IV

Perder hoje a noção de que
o centro da existência somos nós.

V

Quando alguém morre, o que morre
é a nossa possibilidade de compartilhar.

VI

A gente raramente está no lugar que a gente está.

VII

Hoje é dia de abrir a janela e se interessar
pelo "bêbado louco".
Marca da beleza-bárbara desta civilização.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Os Sete Desaforismos VI

I

Ser do tamanho do que se escuta
para se adaptar aos móveis da casa.

II

Lembrar todos os dias que atrás do espelho
há tinta anti-reflexo.

III

Um pingo de chuva pode cair numa poça,
num rio, no mar, na montanha, ou
na calha de um telhado antigo.

IV

Nada se inventa
colhe-se no coração ou na barriga.

V

Hoje é dia de caçar urgências.

VI

O que cada um está buscando agora
é saber em nome do que.

VII

Quando uma lágrima escorre pela língua
é possível beijar um estranho.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Desrazão [ou aqui não há narrativa]

Um coelho segredou buracos:

Julgo de olhos virados em temperatura
a cabeça cortada debaixo dos braços
Aquelas formas botânicas dos servos.

O portão grená está a dizer-lhes:
Tudo o que encosta acorda de eternidade
Ao longe, explosão nos céus.

Ainda ninguém crê como Tomás
Não têm nada o que lhes interesse
Um café? No pátio.

A porta está trancada
Onde estão as chaves?
A chave, Antígona. A chave. Depressa.

O seu defeito é não saber o feito
O risco é sua arte oratória,
mas esqueceu-se de orar ontem a noite.

Todos os presentes julgam o que de fato está.
Isto é fato.
Os livros das comunidades escrevem
com as mãos na enxada.

O coelho continua:

Ataco os infames incrédulos.
Essa gente ouve explosões
que não são de fato loucura.

Um príncipe está só, em pé,
Num pensamento que julga.

A chave do pensamento
escorre leite no fogão.

Desculpe,
As vacas querem batalhas
e seu leite pede um café
após a refeição.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Os Sete Desaforismos V

I

O inconsciente trabalha incansável na escuridão,
acordado ou dormindo.

II

Uma sensação atroz é ter que usar
metáfora para dizer "um martelo".

III

Ler é dar existência ao que se lê.

IV

O desejo é tão violento que
racha uma ideia ao meio.

V

O atento tem dificuldade com a palavra compreensão.

VI

A memória só é ameaçada pelas falsas lembranças
que insistem em nos invadir.

VII

A confiança é o fundamento da conversa.

terça-feira, 13 de março de 2012

Palavras Pisoteadas III

Confusão

Com = estar em companhia, partilhar, não ficar sozinho, ser julgado, olhar para o lado, ter com quem conversar, saber-se junto, levar um chute na bunda, saber-se para além da própria ilha de si, ser olhado, ser amado, não ser a melhor das criaturas, amar, não ter medo da exposição.

Fusão = misturar-se.

Desdobramento pessoal:

Confuso

Com + fuso

Fuso = Agulha cônica em torno da qual se enrola o fio


Moral da história: no misturar-se com os fios que saem das bocas daqueles que estão ao nosso lado - amados e esquisitos - vamos fiando rendas com buracos outros, fendas no tecido bem tramado em que estávamos acomodados costurando certezas no manto que enrolava o cadáver ainda com a impressão de estar vivo.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Navegar Meninos IV

O tempo era de máscaras e todos que viviam naquele lugar esperavam ansiosos Aquela-Época-do-Ano. No templo do saber, homens e mulheres, vestidos de conhecimento, paravam seus afazeres sérios, assumiam novas alegrias e divertiam-se como e com as crianças entre confetes e espumas flutuantes. A menina não. Escondia-se no canto atrás do último livro-fantasia e inventava o seu mundo, um mundo habitado por seres que não tinham que fingir alegria: seres de tristeza-alegre. Nos lugares que a menina inventava, podia-se ser tudo. – Menina. O que está fazendo sentada, enquanto todos brincam suas máscaras-serpentinas? – perguntou A-Que-Mais-Poder-Tinha, do templo do saber. - Nada. – respondia a menina com olhos-de-susto. O que a menina mais tinha medo era ter que abandonar aquele mundo que estava aparecendo no mundo e voltar a conviver com aquelas alegrias-de-medo. A menina, puxada pelos braços, foi levada ao grande salão-alegria. - Divirta-se querida. – dizia às gargalhadas-terror a Mulher. A menina rodava em torno do salão, enquanto todos pulavam-músicas-de-época-feliz e olhavam para o seu rosto-susto. Ela encolhia os braços: queria fugir dali. Até que enxergou no canto do salão um menino de orelhas grandes. Foi aproximando-se devagarzinho. Parecia que ninguém o enxergava. Ele estava sentado de cócoras com os braços cruzados e a cabeça enfiada no peito. Quando a menina chegou bem perto, ele levantou a cabeça. - Você não tem máscara. – suspirou a menina-alegria. O menino emitiu dois ou três sons. Foi o suficiente para a menina aumentar o mundo que começava a aparecer no mundo. O salão foi desaparecendo com as lágrimas-surpresa que embaçavam os seus olhos. Entre marchas-confetes, serpentinas-pulos, a menina e o menino, em silêncio, viveram felizes Aquela-Época-do-Ano.

domingo, 11 de março de 2012

Palavras Pisoteadas II

Concessão

Com = estar em companhia, partilhar, não ficar sozinho, ser julgado, olhar para o lado, ter com quem conversar, saber-se junto, levar um chute na bunda, saber-se para além da própria ilha de si, ser olhado, ser amado, não ser a melhor das criaturas, amar, não ter medo da exposição.

Cessão = abrir mão.

Olhar da direita
Explorar o máximo até tirar a última moeda do bolso.

Olhar da esquerda
Nunca permitir que tal palavra passe pela cabeça.

Olhar do pêndulo
Com sentir. Sentir com. Sem concessão não é possível sentir junto a dor e o prazer que os ventos ventam enquanto a raiz, afunda-se no chão e encontra-se com a água no lençol de dormir água a sonhar com o mar.

Moral da história: O mar é o em que todos são ondas, mesmo na maior das tempestades ou na marola que enjoa.

P.S.
O escritor sabia naquela hora que conceder é diferente de consentir, contudo tramou uma novela dentro de si, puxando fios desajeitados, em busca de salvar a palavra daquela multidão que pisoteava sem dó aquela palavra.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Fraseologia Barroca I

Escuto a frase abaixo e esta esconde-se atrás da cera que insiste em tornar peça de museu todas as coisas que por lá passam:

Primeiro conhecer sua aldeia para poder vencer o mundo.

Estudo 1 - O que as palavras dizem


Primeiro aqui diz respeito à ordem das coisas.

Conhecer aqui diz respeito a ver pela primeira vez e deixar-se atropelar-se pelo novo.

Sua aqui diz respeito às marcas na alma.

Aldeia aqui diz respeito a voltar à região primeva de quando as gentes viviam entre poucos para conhecerem muito.

Para aqui diz respeito à destinação dos atos humanos.

Poder aqui diz respeito à potência para se fazer algo.

Vencer aqui diz respeito a vir a ser.

O aqui diz respeito ao artigo.

Mundo aqui diz respeito a tudo e a nada.


Estudo 2 - De onde as palavras dizem

Aqui é igual ao lugar de onde se fala

Diz é igual ao que vibra antes daquilo que significa

Respeito é igual (como dito em outra ocasião) ao res do peito, dito de outro modo, às coisas que moram no peito ou no coração.

Estudo 3 - Como as palavras dizem

É é é.

Igual é igual.

Estudo 4 - O é das palavras

Fundamento discutido desde o surgimento do primeiro homo sapiens.

Estudo 5

Se houvesse seria metafísica.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Os Sete Desaforismos IV

I

Quando tudo é demasiadamente anônimo
ninguém se fala no elevador.

II

As andorinhas dão voos rasantes
para beber da fonte.

III

Sempre que possível é melhor ler
os fundadores.

IV

O segredo para alguém ser entediante
é dizer tudo.

V

O comerciante só caminha quando fecha a loja.

VI

Quando alguém fica muito livre,
não tem tempo pra nada.

VII

O míope olha no limite da armação.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Navegar Meninos III

Andando por uma rua de girassóis-olhos-para-o-céu o menino queria chegar lá. Todos que por ele passavam faziam a mesma pergunta: para onde você vai. O menino respondia: sei lá. Quanto mais andava por ali mais sentia que aquele caminho continuava a exigir dele um caminhar para lá. Ninguém daquele lugar-de-fazer-coisas-de-fazer-coisas-e-nada-nunca pensava em lá, só queriam saber do aqui e de si. E o menino não tinha si e só pensava sei lá. Quando perguntavam para o menino para quê fazer o que ele fazia ele respondia: sei lá. O menino pensava que quem ficava parado dizendo o saber tudo daqui adoentava de nó nas pernas e podia cair de tropeço em desgosto. O menino reparou-se duvidoso daqui ao ver uma minhoca indo para lá e não parada aqui ziguezagueando inutilidades para a terra. Os outros-todos receosos de dizer o sei lá que sentiam, vendo o menino em seu sei lá profundo enxergaram o silêncio de aquietar-se entre girassóis e olharam para o céu. Viram um passarinho dando gosto para o acaso e sei lá. O não sei daqui de todos de repente quis saber lá. O menino deitou saudade por aquilo que só saberia quando lá chegar.

terça-feira, 6 de março de 2012

Palavras Pisoteadas I

Transtorno

Trans - trânsito
Torno - aquilo que faz girar, voltar

Definição: Alguém em transtorno é alguém que está se voltando para outro ponto que não aquele que sempre esteve.

Moral da história: Tornar-se outro é igual a transtornar-se

segunda-feira, 5 de março de 2012

Navegar Meninos II

Primeiro dia de aula. O menino sentava-se na menor pedra-musgo. O mestre em pé sobre a grama professava palavras-adjetivo que se amontoavam pesadas ao seu redor. Todos os outros meninos também, sentados em suas pedras-silêncio, enquanto ouviam o mestre, esperavam o pedido-mesmo de todos os anos. Meninos do Brejo-de-Cá, quero que todos escrevam uma redação sobre suas férias de Lá. Todos tratavam de pegar suas pontas de carvão e escrever nas pedras. Mas o menino, não. Empacou. Não quis escrever sobre o que não vivera e pensou para si, dentro de si: Nada. O menino olhou para o lado e para o mestre que recusava a sinceridade do não-ter-o-que-dizer. O menino então viu um caramujo que trazia uma casa-vida sobre si, leve sobre a grama. E passou a escrever. Escreveu tanto, que a sua pedra, de pequena, parecia maior. No dia seguinte, o mestre pediu para cada qual ler a sua redação. Os meninos-todos liam palavras-idem, dias de sol, noites acordadas em folia, gente que falava alto, castelos de areia. Hora do menino da pedra pequena-cheia. Terminou assim: ... Sim. Não gosto de esconder-me por detrás das palavras-de-qualidade. Prefiro continuar a ser grama e a sentir o substantivo do caramujo.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Derivar Meninos V

Vivia vermelha. Tudo estava sempre de cabeça-para-baixo. O único remédio era abrir um buraco no fundo do quintal e enterrar a cabeça. Quando alguém-cabeça-para-baixo olhava para ela: nossa. Ficava beterraba. Quando ela não sabia responder uma pergunta: nossa. As bochechas ferviam São João. Ela então corria para o fundo do quintal da casa, abria um buraco e colocava a cabeça ali dentro até tudo voltar de dentro. Um dia, caminhando por uma rua de árvores de bicicletas azuis ela viu um buraco aberto bem no meio do passeio. Aproximou-se com vagar daquele buraco e puft. Colocou a cabeça ali dentro. Quando abriu os olhos: nossa. Viu cabeças enfiadas em buracos-outros e o mais engraçado é que era tudo gente-de-cabeça-para-cima: nossa. Eram meninas, meninos, gente grande e pequena, alta e baixa, magra e gorda e todo mundo cabeça-para-cima. Espantou-se um tanto que pensou felicidade dentro de si.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Os Sete Desaforismos III

I

Crescer lá fora, no meio da floresta,
para viver outro tipo de realidade.


II

Preparar-se em segredo para a morte.


III

O que é preciso: que dor e alegria
estejam no centro.


IV

Retornar da solidão e da tristeza da infância.


V

Ser de outro lugar e haver outro lugar no Ser.


VI

A espécie humana não suporta muita realidade.


VII

Abrir como uma flor quando se sente simpatia e afeição.

Ser atraente quando se abre.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Derivar Meninos IV

O menino que era pequeno não gostava que os outros meninos o chamassem de Pequeno, mas o tempo foi passando: dias, semanas, meses, anos, e ele continuava a ser o “Pequeno”. Já havia se acostumado com o apelido que os outros criaram, inventaram. Ele então, um dia, andando pela rua, a caminho para a sua casa amarela... Sim. Porque o menino que era pequeno morava numa casa amarela, de portas e janelas amarelas, de paredes amarelas e com diversos quadros pendurados de amarelo. Ele então parou e pensou: - Estranho. Como é que as pessoas inventam as coisas? De onde é que elas nascem? Eu queria tanto inventar. Será que só algumas pessoas têm esses poderes mágicos? E pensando naquelas perguntas, que haviam surgido, simplesmente porque o seu apelido era “Pequeno”, passou a olhar para tudo de outra forma. Todos os dias quando acordava prestava atenção em cada coisa que seus irmãos faziam, em cada palavra que sua mãe lhe dizia, em que cada novo olhar do pai. O tempo foi passando, e já era final de um ano em que muitas coisas haviam passado pelo menino, ele então, sem querer... Foi assim que o menino percebeu aquilo que aconteceu: sem querer. Ele olhou para a avó sentada na beira da poltrona na noite de ano novo. Ela estava como todos os anos, mas com um sorriso que só as pessoas que estão na noite de ano novo têm. Ele pensou: - Ano novo? Novo? Como novo? Novo por quê?! Por que novo? No ovo, será? Que sai do ovo? Que vai nascer? Será que o novo ano vai nascer? Mas e as coisas desse ano, vão desaparecer? E com muitas outras perguntas, fixava seus olhos na velha avó sentada como todos os anos.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Navegar Meninos I

Atrás do monte mais alto daquela região, existia a Cidade-dos-sem-Conversa. Naquele lugar, homens e mulheres andavam pelas ruas apenas para cumprirem seus compromissos: ir e voltar, comprar e pagar, levar e trazer... Tudo caminhava pra frente, até que a Mulher, que usava uma capa branca, certa feita, ao cruzar com uma outra Mulher de Chapéu-em-Espiral, ouviu: - Bom dia! A Mulher-de-Capa-Branca espantou-se um tanto, que gritou e ao olhar para trás percebeu que a sua sombra havia desaparecido-de-susto. Desesperada, a mulher passou a procurar a sua sombra em tudo o que era lugar. Naquele dia mesmo andou por todas as partes à procura e: nada. Até que a Mulher-de-Capa-Branca, que estava indo para depois voltar, percebeu que havia saído do andar das coisas: - E agora? – pensou com tanta clareza a confusão-que-estava. A Mulher-de-Capa-Branca andou tanto que não havia percebido que estava bem distante da Cidade-dos-sem-Conversa. Avistou à sua frente uma árvore. Em cima da árvore: uma casa toda feita de cascas de banana. Ela percebeu que havia alguém ali dentro:- Tem alguém em casa? – gritou a mulher em busca de ajuda. De dentro da casa saiu um Macaco-Bola - uma espécie rara em dias-quadrados. A mulher ficou espantada, pois só tinha ouvido falar de uma espécie daquela em livros que tinha lido no tempo de infância, para ela aquilo nem existia, era apenas: ficção. - Bom dia, senhora. Em que posso ajudá-la? – perguntou o Macaco-Bola, com uma banana-quase-comida nas mãos. - Ajudar? Como assim? Ajudar... nunca ninguém disse... quero dizer... eu... eu estava andando pelas ruas, estava indo... eu teria que voltar... mas... eu... – disse a mulher tropeçando nas palavras. - A senhora está um pouco confusa. – percebeu o Macaco. - Estou. Tenho certeza que estou. – falou a Mulher de maneira direta. E contou tudo, ao Macaco-Bola, o que lhe havia acontecido naquele dia. Quando a Mulher-de-Capa-Branca se deu conta, as horas já haviam passado. – Nossa. Fiquei conversando e o tempo passou, a minha sombra mesmo ainda não achei. – disse a Mulher voltando ao desespero. - Olhe para trás. – disse com ar de sabedoria o Macaco-Bola. A Mulher olhou bem devagar para trás, e qual não foi a sua surpresa: a sombra estava ali, bem atrás dela, fazendo todos os movimentos que a mulher de maneira exultante fazia. - Não é possível. Como? Como ela voltou? Ela estava escondida aqui na sua casa, não é mesmo? – perguntou a mulher desconfiada. - Não, é muito provável que a senhora tenha escutado o “bom dia” ao meio-dia, e ao meio-dia o Sol está a pino. Os dois riram-se tanto que nada ficou igual. Nem a ficção, nem a Cidade-dos-sem-Conversa.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Este texto nasceu no carnaval de 2012, no Horizonte Belo de Minas Gerais, conversando com San Juan De La Cruz, Marguerite Porrete, Maria Gabriela Llansol, Vania Baeta e tantos outros. Peguei uma tesousa para cortar trechos com os quais eu pudesse dizer um certo amor, depois veio o papel... e, por fim, o grão da voz.



Dos poemas inéditos nasceram os vivos,
Alguns se sabiam um vivo sem em mim viver. As memórias sabem-se nervos, desequilíbrio de pausas. Levar a escrita ao grau do impossível e ver, deitado na cama, o amor despossuído de vestes. Nu em carne com a fechadura a segredar:
Bem sei eu da fonte que mana e corre mesmo de noite.
Há trinta mil anos a pedra gritava à brita:
Sua origem não sei, pois não a tem, mas sei que toda origem dela vem, mesmo de noite.
Homens e mulheres e pessoas e palavras sentam-se de costas uns para os outros e escutam o corpo destacado,
a maneira distante de fazer amor.
As pernas têm músculos que sustentam o ventre, pois há grãos ali,
não brotam como feijão em algodão úmido, brotam de dentro da terra.
Ali, Alá, São João, Porrete, há uma espécie de Puro Amor Puro a escavar a prece.
Ah, Amor, diz essa Alma, que deve ser feito então? Certamente nunca se acreditou tanto em algo quanto no que se diz agora.
Corpo destacado na pulsão mística do santo.
(Amor): - Essa Alma, diz Amor, nada em um mar de alegria.
Foram confessar ao mar e escutaram: nada.
No mar das delícias que fluem e correm, e não sente nenhuma alegria, pois ela mesma é a alegria, ela nada e flui na alegria, sem sentir nenhuma alegria, pois ela reside na Alegria e a Alegria reside nela; ela mesma é a alegria em virtude da Alegria que a transformou em si.
Paulo de Tarso perguntou à Llansol:
Como a meditação do Amor Puro tem somente uma intenção.
Razão pergunta a Amor quando essa Alma está na pura liberdade de Amor.
Marulho do mar.
Ser aquele que chama a palavra ainda não inventada.
Certo corpo abriu o terreno com a enxada, carpiu os dias para que a noite tivesse cabimento. Reza não é oração e estão orando desde ontem.
Entrou-se onde não se sabia. Aquela eterna fonte está escondida, mas bem se sabe onde ela tem guarida, mesmo de noite. Sabe-se que não pode haver coisa mais bela, e terra e céus dessedentam nela, mesmo de noite. Sabe-se que ela não tem leito a assoalhá-la, por isso. Ninguém pode vadeá-la, mesmo de noite.
Ser aquele que tapa a boca e grita há trinta mil anos.
A meditação do Amor Puro tem somente uma intenção, a de que a Alma ame sempre lealmente como parte daqueles para quem a linguagem guarda o dito e não-dito, e as razões raramente são a verdadeira razão.
A música chega e diz:
Há cinco bens sobre a terra __________________ a abundância, o conhecimento, a generosidade, o prazer do amante e a alegria de viver.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Derivar Meninos III

Era uma tarde escura. Os meninos voltavam de onde tinham ido, como sempre. O menino-parado estava a ver passarinhos carregando futuro no bico. O seu azul era tão luz que seus olhos faziam lanternas para o que vinha. Dois meninos que passavam por ele na escura-velocidade espantaram-se com o parado do menino e irritaram-se para si. Era tanto nervo-espinafrado que as palavras ponte-aguadas pulavam sem parar na direção do menino. Saiam magras de intenção e caíam gordas no chão. Iam amontoando-se. Algumas escorriam pelos narizes, outras pelos ouvidos, algumas desfaziam o nó do umbigo e desmanchavam os meninos de sua meninice. O menino-parado parecia não entender nada. A única coisa que o menino fazia era continuar parado. Uma muralha de palavras foi entocando o menino que resolveu tirar uma gaita do bolso e tocar no dentro-do-aqui sem ter o que dizer. As palavras no chão, foram ficando animadas e uma ao lado da outra, flutuaram o espaço. A princípio algumas diziam devaneios e aos poucos fizeram uma roda-de-mãos-dadas. O menino abriu a boca em bocejo. Enrolou-se naquela colcha-de-guardar-segredos que flutuava na imensidão e dormiu. Acordou-se no outro dia mais parado do que nunca e envolvido pelas palavras que roçavam no seu rosto dizendo: Anda, pode andar.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Derivar Meninos II

Ele olhava para algodão e via feijão. Um dia caminhando por um campo de plantação de algodão ficou com medo de tanto feijão que poderia dali nascer. Quando sonhava-algodão-nuvem-do-céu sua cabeça pensava feijão. Quando comia algodoava o palato mole. A professora-da-casa-saudade-de-saber ensinou que no fundo dos copos recheados de algodão nasciam feijões. Era preciso cuidar. O menino tinha medo de cuidar. Achava que tudo que era cuidado viraria feijão. Ele não gostava de comer feijão. Havia uma comida que na vida de todos que ali viviam era A Verdade: arroz com feijão. Mas o menino não gostava de comer verdades. Ele gostava de inventar. Um dia o menino cresceu um tanto e descobriu que feijões não nascem de pés-de-algodões ou copinhos úmidos-de-mentira. Descobriu que brotar não é colher antes de plantar. E que cuidar é outra coisa. Descobriu que brotar não podia ser sem chão. Descobriu. Tirou a coberta de cima de si e levantou-se da cama. Espreguiçou-se. Abriu a boca e todo mundo viu uma lágrima escorrer de seus olhos. Quem olhava aquela lágrima dizia que era de verdade.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O homem acordou mapeado no espelho
Os sulcos eram rios de um passado vivido.

(...)

Navegou os olhos pelas cicatrizes do tempo,
Lembrou da gargalhada infantil,
De amantes bêbadas.
Aquela pele estava a conhecer.

(...)

Foi pouco tempo para pensar nas árvores,
Nos passeios,
Chorão.

(...)

Na casca morada das cigarras, a pele dizia:
- Hoje só termina amanhã.

(...)

O grilo que estava encostado no tempo, soltou:
Neste momento é que tudo acontece.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Neste carnaval meu corpo sangrou palavras como furar a orelha para colocar o brinco.

Mandei o meu corpo para oficina fazer a revisão. Distraído ouvi da boca da mulher-que-orientava-o-curso-das-coisas a seguinte história:

Na Nicarágua de antes, um pequeno índio entrava todos os dias na grande Igreja. Lá imitava os tantos com o rosário em mãos e passava as contas numa única mão até a Virgem sorrir para ele, depois ia embora, como os santos.

Num dia qualquer, o padre de batinas longas, estranhando o comportamento colorido daquela alegria mirim, perguntou reticente:

- Você sempre vem aqui... vejo que sabe rezar, então reza o Pai Nosso e a Ave Maria?

- Ah?

- O Pai Nosso e a Ave Maria?

- Ah?

- Vejo você usando o rosário como todos, de maneira correta...

- Eu só olho bem nos olhos da Virgem e digo: um pra mim e um pra você e ela ri pra mim.

E com voz catequética o Pai ensinou a reza ao filho e a Virgem nunca mais riu.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Prólogo

O assunto era democracia.

Ato I

Um falava sobre o Irã, o outro sobre Atenas:
- Não sei se devemos temer tanto.
- Quem diria, berço da democracia.

[intervalo]

[O escrivão lembrou que Platão disse sem querer:
- Esqueçam os persas!]

Ato II

Um falava sobre o Irã, o outro sobre Atenas:
- Sabia que os persas já foram iranianos?
- Sabia que a democracia já foi grega.

[segundo intervalo]

Naquela de Platão dizer o mundo sem lugar, o mundo U-TOPOS, o mundo Utopia, tirou o Irã da jogada, deixou todo mundo ter raiva do que era persa e inventou o EU.

Ato III

Quando o EU apareceu neste mundo, tomou conta da VIDA e a VIDA ficou submissa aos caprichos do EU. Todos olhavam para o surgimento do EU como um ganho, mas um homem que fumava cigarro de palha, sentado de cócoras, disse entre risadas de louco:
- Isto é tipo comprar um sítio, duas alegrias: quando compra e quando vende!

Ato IV

O EU chegou silencioso no mundo, dizendo EU posso, é só EU querer que tudo acontece, sou EU quem decide o futuro, e a VIDA ficou ali, na espreita, esperando a hora da grande "venda".

Ato V

O homem continua de cócoras, meio vagabundo aquele homem, meio poeta, meio desvalido de utilidade, mas costuma dizer para quem passa e para os homens que conversam sobre democracia:
- Sonho com os dias em que a vida seja maior do que EU.

Epílogo

O escrivão abre o jornal, onde lê:

Milhares estão nas ruas de Atenas protestando contra a crise financeira que assola o país.

UE embarga petróleo do Irã.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Derivar Meninos I

O menino acordou esquisito. Estava meio molhado o menino. Ele não tinha feito xixi na cama. Os olhos do menino estavam chorando. O menino foi até o espelho e olhou. Viu uma pinta. A pinta não era uma pinta como as que o menino conhecia. O menino descobriu que a pinta era uma estrela-do-meio-dia que estava deitada na sua cara esperando a noite. Deitada um tanto que já estava dormindo. O menino tirou o chapéu marcha-soldado que usava, cortou as duas pontas e o fez barquinho-de-papel. Entre as águas salgadas e revoltas de olhos que choram o menino pôs-se a navegar. Navegou tanto que chegou até onde nascem as estrelas antes de tornarem-se pintas.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Os Sete Desaforismos II

I

propaganda já foi reclame,
hoje reclama-se da propaganda.
[os olhos não deixam de olhar. o que se clama?]


II

sacrifício é manter-se no frescor.


III

- Há vida fora do trilho. - disse o trem.


IV

quando o Buda sentou sob a árvore, lembrou que tinha bunda.


V

a vida que temos que viver pode já estar sendo vivida.


VI

Hábito é bifurcação: habitar ou habituar.


VII

quando Moisés avistou a Terra Prometida estava fazendo a reforma agrária.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O-caso

Um homem seca o piso, enquanto um outro remove a terra desvalida de minérios. A flor demonstra a ausência e os homens distraem-se sonolentos em vigília. Vão de um lado para o outro sem pensar. Na noite anterior Penélope foi à Troia, Ulisses não voltou para casa, Eugênia despediu-se de Adoniran, simplesmente porque as crianças não tinham onde dormir.

Do Pinheiro mais alto avistava-se o massacre, em que homens e mulheres e velhos e crianças e cachorros e passarinhos e gente misturada era atingida por sal, tipo lesmas de quintais úmidos.

A diferença, distintos senhores e distintíssimas senhoras, é que a terra está sendo limpa para acomodar dinheiro sujo. Para este tipo de ato não há lavanderia possível.

Os homens continuam a lavar e a secar as ruas depois do temporal. Suas roupas trazem respingos de sangue de gente, da sua gente. Aquilo, ou, isto de homens massacrarem homens é sinal de nosso tempo.

Pergunta-se por aquelas ruas:
- Para onde vão as raízes quando não existem terras para replantá-las?

Luzia nunca mais encontrou Lourdes. O menino jamais reviu o vira-latas Peludo. A menina abandonou à força a boneca aos tratores. O homem perdeu as pedras do dominó e nunca mais reviu o Batata. A velha adoeceu de saudade e seus bordados, agora sujos pela lama do lucro, tapam os buracos do medo.

Os homens de poder estão deitados em 400 fios de lençóis (lendo efemérides) ou discutindo às mesas de madeira-de-lei a Divina Comédia do Dante ou nas Igrejas verbando algum João ou Matheus ou Lucas: comem embutidos europeus.

Pregaram os pés da resistência e lá no alto avista-se o pequeno Pinheirinho. Mas quantos massacres ainda serão necessários para que paremos de repetir a mesma crueldade de séculos? A dor está gritando sem parar, ouço os gritos marcharem até aqui e meus ouvidos doem.

Os dois homens fardados, que cuidam do jardim, entreolham-se quando ouvem a voz do escrivão:
- Será um louco?

O escrivão deita a caneta e pensa se não está a enlouquecer, falando sozinho.
- Sozinho? O que ele está dizendo? - comentam.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

ATO I

O que se espera de um compromisso assumido? O que se espera, o que se tem esperança: missa, missão, prece. Se apressado pressou a escolha de alguma coisa descolada, o reverso virá em breve cobrar-lhe que devolva. Agora se em prece comunga comigo ou consigo ou convosco ou conosco aquilo que de fato deve ser feito, agora o que se deve ao ato é cumpri-lo. Deixa a carne atropelar-se por certo esforço de manter-se atento sem vacilo do primeiro instante até o último. Deixa o prazer em química escorrer sobre o gesto de se ser consistente do princípio ao fim naquilo que missou cumprir. Se sabe que em tudo há dor e prazer não precisa ficar o tempo todo acovardando-se a separar gesto de gemido. Tudo é junto quando se está presente em prece na única coisa que se pode fazer: dizer sim ao sim que se jurou ao agora.

P.S. Houve tempo em que justo era dizer não.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Os Sete Desaforismos

I

a pessoa a sua frente é a própria humanidade.


II

coisas que a língua faz: "alguém vai voltando"

Só é possível ir para frente voltando-se sempre.


III

Duas mulheres conversam sobre o gosto:

- Eu gosto de gelado.
- Não gosto de nada gelado.


- Eu gosto de azedo.
- Não gosto de nada azedo.


- Eu gosto de ardido.
- Não gosto de nada ardido.


O homem escuta e pensa:
- Gosto não se discute, mas do que será que eu gosto?


Será isto uma discussão? - pensa um coelho enquanto consulta o relógio para entrar na história de Alice.


IV

a explicação é obra da preguiça.


V

é bonito ver uma pessoa animada, talvez porque nos lembre da alma.


VI

sair do assunto é o mais interessante.


VII

milagre: nascer para nós mesmos.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O homem gritou atrás de mim, como se estivesse na frente:
- Massificação.
O ar era de 1850, eu olhava apenas os retalhos de lona caídos no largo,
Ele olhava a junção de cada pedaço para cobrir o suor com dominação:
Como quem vê amoras sangrando o chão ou mulheres férteis dizendo pronto!
Levi Strauss viu nos retalhos força
O homem viu em Levi Strauss o Capital.
Pan era o deus dos rebanhos e pastores,
ele costumava assustar os homens com suas bruscas aparições.
Fletir poderia significar fazer flexões.
Entre mim e o homem havia um ouvido panfletário:
- Os assombros podem fazer flexões.


P.S.1. No auge da corrida pelo ouro, com minas lotadas, Levi Strauss observou a oferta de lona e a fragilidade das roupas dos mineradores. Confeccionou calças resistentes, com bolsos reforçados com rebites de cobre.

P.S.2. Na última manifestação 30 homens e mulheres inscreveram-se para falar a mesma coisa, achando que estavam dizendo coisas diferentes.

P.S.3. Eu estava na última manifestação e continuo a marchar vestindo calça jeans.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Aquele dia juntava sol e chuva,
outrora diziam:
- Casamento de viúva.

A mulher de guarda-chuva fechado
não conseguia esquecer o nome do objeto.
O sol queimava a dúvida.
- É a curva que anda?
- É a vida que é curva?

Súbito: uma dúvida.
Duas-vidas.
- Seria a dúvida o ponto nervoso
das sempre duas vidas trazidas
na mochila?

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Um homem, sentado ao pé daquela,
Canta a solidão primeira xxxxxxxxxxx
Lá onde a religião era árvore e só:
- O que digo quando digo respeito?

Escuta a pedra a bater na lagoa longa:
- Res = coisa.
- Peito = peito.

[Alguma coisa no peito? – pergunta
entre colchetes à consciência distante]
Por onde andam as coisas,
quando nos desabrigamos das figueiras?

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Algumas palavras não ficam famosas. - pensou com a mão apoiada no queixo, o homem oblíquo.
Relho
Irrisão
Dilação
Tez
Escopo
Seus sinônimos são mais carismáticos, achegam-se ao povo. Será algum segredo da língua? - Acendeu um cigarro e virou-se para ver quem passava na esquina.
Que corpo é este que ocupa um lugar no tempo? - continuou, enquanto esfumaçava o espaço.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Medida provisória

I. Nem noite, nem dia: lusco-fusco.
II. Falar menos e mais simples.
III. A cada tempo próximo revirar os mortos que estão com dores nas costas.
IV. Pesquisar se outra vez é o mesmo que de novo e se vez e novo são sinônimos.
V. Trabalhar no ofício e oficializar o trabalho.
VI. Colher todos os dias uma palavra plantada pela humanidade de todos os povos.
VII. Visitar os cadernos de ontem.
VIII. Investigar a crítica: paradoxo ou solidão?
IX. Proclamar mais, clamar na medida e reclamar menos.
X. Quando ficar deslumbrado com o significado de algo não ignorar a sua estrutura.
XI. Não trocar de cadeira quando a ferida estiver na bunda.
XII. Ler o prelúdio do apólogo.
XIII. Ter renda para não se render.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

O homem separou a xícara do pires,
antes de golar o quente:
- Busca-se ser o SER do-ente?

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Ouve-se ondas curtas.
- Última notícia: os textos extensos a partir de um hoje serão escritos em apenas uma única linha.
A chuva espanca o céu.
Senta-se de cócoras, como quem pede silêncio.
Distrai-se do barulho até chegar à música.
Lá abraça a solidão.
O temporal continua até torcer as palavras.
cruzar o rio, tateando as pedras.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Da direita para a esquerda
O olho de dizer quedas.
(Na ponta da mesa
O ovo fincava firme a forma).

Joana, enchia o cesto
catando as coisas caídas.

(...)

Na esquina,
Dois conversavam:
- Você está caindo num outro assunto.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Na central telefônica, a moça tipo cabelos secos, ouve do outro lado da linha:
- Um apelido para o que não sei?
Sem ter para onde olhar, dentro da cabine, sonha com os dias de celebridade:
- Destino?!
Do outro lado, apenas um rio.
A moça não quer continuar:
- Um minuto, por favor. E desliga-se de si.
A moça abre a gaveta à sua direita e manipula um esmalte,
quer pintar o que sente enquanto do outro lado da linha
o falante, escreve:
barganhei com o voo antes de plantar meus pés no chão
no limite: turbulência
hoje encontrei uma viela escurecida de mim.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

no molho, mistura de tilintalo
um homem vê uma chave:
- isto... bem... isto é um chavão. - tartamudeia em filosofia.
experimenta a chave:
ao abrir a porta toma consciência
de que tem uma consciência