quinta-feira, 26 de abril de 2012

Duas palavras no infinitivo-de-brotar saíam da boca do lobo:
Sonhar
Lugar onde a Lei não tem começo, meio e fim.
Despertar
Lugar onde ter posição é deixar-se não ser submetido pela Lei com começo, meio e fim.
No bosque, a menina encantada com a narrativa, deixou seu estilete cair:
- Nunca mais cortou o real.
Explicações subjetivas das motivações escriturárias destes escritos:
Estilete = objeto cuneiforme que corta o real de cada ser terrestre; aquilo que dá estilo ao ser terrestre; aquilo que arranca o ser terrestre da submissão do céu e transporta (metáfora) para o sonhar e para o despertar; aquilo que o emancipa da Lei do começo, do meio e do fim.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Poema infanto-imperfeito

Na cozinha, a mãe carpia o mato da tradição.
Na sala, o pai cozinhava o sonho da mutação.
No quarto o menino lixava a imaginação.
Todos cantavam de madrugada
E de dia tinham a casa alugada.
Os inquilinos, de tempos outros, eram sombras
Ocupavam a casa de sol a sol com suas obras.
Na noite voltavam para a sua própria morada
Lá onde só se podia ser quando não se era nada.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

causos de palavra

I
O homem comia um prato com arroz enquanto contava um medo:
- Nossa. Fugiu a palavra.
Nenhuma coisa É onde a palavra foge.
II
A mulher esperava o ônibus, quando perguntou:
- Escuta, aqui passa o "carinho"?
Tudo depende se damos passagem ou se recusamos este algo que nunca foi dito.
III
A criança brincava na poça, depois da tromba d´água:
- Deus chora?
É a linguagem passando de raspão.
IV
A velha dizia ao velho, enquanto assistiam à televisão:
- As pintas de minha mão escondem aquela que talvez tenha sido.
Poesia é a experiência com a linguagem.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Hoje, o homem de chapéu de lã puído, resolveu catar as folhas do chão. Enquanto abaixava-se para os restos que as árvores deixavam de si no mundo, o homem viu que aquilo não era causalidade. Tudo deixava restos. A questão era saber a moral dos restos. O homem já não tinha a mesma desenvoltura de catar depois que começou a pensar dentro da alma dos restos. Estaria o chapéu de lã quase-resto sonhando o homem? Ou eram as árvores a despertar o homem de seu resto de vida? O que todos sabiam era que o chão não estava a dormir o resto de sono que lhe sobrava. A copa estava delgada de restos de folhas por cair. O homem aprendeu do todo da árvore o que ela sabia e o que ela não sabia. Estava a escalar a sua própria insignificância ao dar simpatia aos restos.

terça-feira, 17 de abril de 2012

A mulher de nariz grande olhava o cachorro defecando no quintal:
- Amar é cansar-se de estar só.

O homem de jaleco marrom tinha um cortador de unhas enguiçado:
- O mundo da letra é a invenção de um mundo de solidão.

A criança com os pés-duro de asfalto quente tinha um nariz que escorria:
- Leitura e escrita são caminhos para a interioridade.

A velha cozinhava brócolis na panela de pressão enquanto ouvia o rádio AM:
- Sou um só como todos e como todos sou um só.

O velho acumulava papéis na gaveta da cômoda do quarto, em disputa com as toalhas bordadas pela mulher:
- Os que amam continuam solitários.

Nossa Senhora ficou muda desde que acenderam a luz do quarto escuro. O oco que era da santa ficou dentro daquela criança sentada no canto do mundo.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Os Sete Desaforismos XI

I

Nenhuma coisa É ali onde falta a palavra.

II

Tudo depende do que pensamos-sentimos
a partir do que dizem as palavras que dizemos.

III

A presença das coisas vem da ausência.

IV

Quando alguém sai e bate a porta
ganhamos a chance de pensar o presente.

V

O que importa mesmo é o começo de uma conversa.

VI

Não há pensamento enquanto não se sente o que se escreve, ou
não se escreve o que se sente.

VII

A dobra num livro é a ruga no rosto
de um velho que nunca esquece daquele dia.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Um homem comia bichinhos-da-goiaba através do fruto.
Ontem conversei com o pai do escritor.
Ele dizia:
- estou aflito, porque em breve vou encontrar-me com aquilo que está antes da morte.
O escritor não sabia o que o pai queria dizer ao que o pai respondeu-lhe:
- não quero dizer nada, estou dizendo já.
O pai tinha as pernas parecendo troncos velhos de árvores e seus cabelos eram longos, suas unhas estavam grandes e seu rosto sulcado pelo tempo.
O escritor guardava o ar que arranhava palavras enquanto olhava o pai.
Um dragão de comodo apareceu bem na hora de dizer:
- eu te amo meu pai.
E todos só tinham olhos para o rabo do bicho.
O pai não tinha medo, parecia que ele tinha entendido algo do mistério - que por ser da ordem do mistério não pode entrar na ordem do desmistério.
Ainda com os olhos virados para a criatura que tinha surgido - sabe-se lá de onde - o pai continuava a escrever no escritor:
- guarda suas certezas e não luta com o que te faz mal, o melhor é não resistir ao que te faz mal, vira as costas e deixa que a coisa se devolva pra si o que de mal ela guarda para o mundo.
Nesta hora apareceram por ali morcegos herbívoros. Eles gostam das goiabas que ficam dentadas de noite para o dia habitá-las de bichinhos.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Dito de outro modo: Conversão

Certas gentes têm crenças. Outras tantas dizem sem ter.

Este "dizem sem ter" é proposital na oração. Quando o escritor ora aqui na frase, procura torcer a substância do verbo até a possessão do adjetivo.

Voltemos às "certas gentes" que têm crenças.
- São elas os sujeitos desta oração. - pensou o escritor digitando as letras.

Quando estas gentes encontram aquelas que "dizem sem ter", invocam-se tanto com este dizer-sem-ter que querem tornar o outro um ser-no-por-vir-da-salvação, sabem que converter este outro é também salvar-se a si próprio.

(O teólogo abriu o livro à direita do escritor e leu:)
- Dai ao crente esperança e temor e expandirá o rebanho.

(O escritor pede que o teólogo espere do lado de fora do gabinete para que ele termine a escrita iniciada por "certas gentes...".)

Pois bem, neste impulso de salvação - simplesmente porque pode ser que todos, demasiado todos, estejamos bem perdidos - que se apresenta a encruzilhada mais-de-beleza da conversão.

É possível que lá, onde queda a morada-da-fé, as gentes possam criar uma nova versão de si.
No ato de salvar o outro elas podem se deparar realmente com a sua perdição, pode ser que lá, elas possam verter o que nunca haviam vertido, como quem fura petróleo no deserto e sangra tão fundo, mais tão fundo, como um sangue-negro-da-comunhão.

Uma versão de si que se dá com o outro, no encontro da perdição.

Converter pode ser visto aqui como verter um outro de si com o outro-do-outro que com você também verte um outro de si.

Só assim a conversão pode ser o encontro-com-a-fé: a certeza de que nós carregamos, para além de filões de peles, camadas-de-outros-nós-a-serem-desfeitos-por-nós.

terça-feira, 10 de abril de 2012

O escritor escutou de um Millôr Fernandes de 1989:
- Uma vez me perguntaram por que homens e mulheres se expressam tanto com a palavra e tão pouco com o desenho, com a música. Foi o que respondi: são cinco bilhões falando do momento que acordam até a hora de dormir. Dá para entender?

Esta frase estava na lembrança do escritor, escorreu até os dedos, foi o que pensou:
- Será que quando a gente guarda uma lembrança, mesmo esta à época do muro que ruía, será que estamos escrevendo algum texto dentro de nós?

Daquela lembrança-pergunta, de singela e ingênua, cavou um poço:
- Nós pensamos ou somos pensados?

Ele não parava, não conseguia descansar os dedos.
Então, preparou uma cumbuca com água quente e pôs os dedos a dançar naquela poça:
- O que fiz com a frase de Millôr foi roubo, cópia, plágio, citação ou autoria.

Sem saber. Digitou o que pensava e ainda pensou:
- Seria mais feliz se ao invés de "digitou" tivesse escrito "desenhou", mas isto não seria verosímil.

sábado, 7 de abril de 2012

SMS - 15 anos ou poemas da existência de um jovem

1 ano

Que o poema rompa diante de ti entre vistas que se veem como o ar para o balão.

2 anos

A indiferença causa a maior das dores.

3 anos

Saudade que aperta e dilata o existir.

4 anos

Uma noite. Mais um deus tentou encostar a cabeça no silêncio. Que a gente tenha força de estar presente na espera de agora.

5 anos

Sentindo seu cheiro abrindo costelas. Repente de susto. Ar quente no céu da boca.

6 anos

O dia nasceu com uma pergunta: o que pode ser tão partilhado numa vida a dois como foi andar de balão? O dia caminha pelo parque com contundência e entrega. Também quero escorrer assim. Me acompanha?

7 anos

O homem entrou na sala e viu uma bacia-de-pés-de-terra. Do outro lado re-parou no buraco enquanto beijava a boca da mulher. O homem percebeu o desejo crescendo. A mulher fechou os olhos e o homem virou de lado. Enquanto espera a abertura dos olhos o homem olha para a escada e se pergunta: ela está subindo ou descendo?

8 anos

Um dia amanheço ostra, no outro desperto leão. Tenciono a língua no mundo, afrouxo os lábios ao navegar. Viajante-mulher, peguemos o remo, o mar está bravio, mas nossas pernas sabem boiar.

9 anos

Dia que começa dentro é dia inteiro por fora.

10 anos

Saudade feita de alma e osso.

11 anos

Daqui, do vento que sopra, a direção do hoje. Sinto gosto de assoalho encerado nas partilhas. O sopro responde na direção do abraço.

12 anos

O peito às vezes tem que se dilatar para caber a saudade.

13 anos

O coração do contador de histórias sai pela boca.

14 anos

O cheiro de ontem ocupa cada canto da casa. A casa ocupa cada canto de mim. Canto.

15 anos

Estava apertado. Escrevi. Agora tudo tem cabimento.
Hoje o homem caído entendeu sua queda:
- Manobra usada em reuniões, discussões ou plenários, que consiste em recorrer a artimanhas, a fim de prejudicar a discussão de um ponto, para evitar sua aprovação, forçar um adiamento.

É isto que vivemos quando não falamos sobre aquilo que nos salvaria do silêncio sofrido.
Do alto uma voz:
- Diversionismo.
Ninguém quer falar sobre as coisas nas mesas dos bares, nos bancos dos trens, nas carteiras das escolas, nas salas dos professores, no canal cultural da tv, nas filas dos bancos, nas mesas das casas de pais e filhos.
Hoje aprendemos a tática.
O deus dos dias que vivemos: tática diversionista.


Um pássaro azul e amarelo dita as regras políticas da Ágora que insiste em adiar o dito de agora.

Felizmente há os loucos que insistem em voltar ao assunto.
Assunta é uma mulher com ideias de papelão que gosta mesmo de nos lembrar:
- Não fuja do dito, maldito.
Depois continua sua peregrinação em busca das palavras que possam cicatrizar tamanho abandono.
Abonaram os dias de razão e deixaram Assunta à sorte, hoje todos os "táticos" estão se divertindo, é dia do Senhor Morto e as águas do mar estão impróprias para banho, não sei se dormem bem ou se rangem os dentes: isso é segredo das cabeças de cada um deles.
Só sei que não falaram quando tinham que dizer e Assunta continua dizendo e sendo acusada por eles - quando voltam para seus ofícios às segundas - de que ela não sabe o que diz.
E ela grita. Quem sabe termine o luto de dois mil anos e retornemos à vida.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Numa conversa de ônibus, a mulher ouviu:
- O mundo já acabou, agora o que restam são as justificativas.

Na frente da escola dois outros diziam:
- Hoje pela manhã limpei meus preconceitos.
- Como foi?
- Fui a uma tourada e vi sete mortes: a primeira eu chorei, a segunda eu olhei, a terceira eu me olhei, a quarta eu parei, a quinta eu rezei, a sexta eu perdoei, a sétima eu senti.

Do outro lado da rua, a velha palavreava com outra:
- É um artista renomado.
- Renomado quer dizer que dizem muito seu nome?
- Não, renomado é que ele teve um nome um dia e hoje tem outro: tipo Fernanda Montenegro ser Arlete.
- Deve ser estranho ser alguém renomeado, não é?
- É acho que neste caso é renomeado e não renomado.
- É.
- Então, pode ser que renomado venha de nômade. Aquele que não tem onde viver depois que fica famoso.
- Pode.
- Quanta coisa uma palavra pode, não é?
- E a Lourdes, vai bem?

No centro do terreiro o velho falava em voz baixa:
- Incorporar é diferente de atrair. Incorporar é absorver com o corpo e atrair é não-trair. Às vezes incorporamos pessoas e às vezes atraímos pessoas. Às vezes incorporamos ideias, às vezes atraímos ideias.
Todos ficaram atraídos por aquele jeito de falar do velho.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Episódio 1

lá, longe da casa de número 1, os homens cantavam suas verdades
um dia, a mulher de cabelos longos foi chamada até a sala mais alta
lá, desfizeram suas tranças e esticaram seus cabelos
a mulher nunca mais soube o que era a verdade de seus cabelos.

Episódio 2

todos chupavam laranjas cerrando a casca com um estilete velho
as laranjas desapareceram dos pés de origem
carregavam caminhões pipa e davam linha para o céu
as máquinas de fazer sulco custam trezentos dinheiros em qualquer parte.

Episódio 3

naquele tempo todos por ali tinham o que dizer depois de cavar um poço
depois de uma tarde ensolarada e de um decreto governamental
os homens e mulheres taparam todos os buracos abertos pelos verbos
agora as palavras não tinham por onde sair, elas continuam a entrar

P.S. tem dia que dá a impressão que não cabe mais nada dentro da gente. disse o escritor cutucando o verbo.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Os Sete Desaforismos X

I

A escrita sofre quando não escreve.

II

O pior roubo da alma é a indiferença.

III

Saber cantar um texto até a última nota
pode ser dar atenção ao rodapé da casa.

IV

O aprendizado mais importante da vida é:
escrever o eu minúsculo sem sentir que está traindo a gramática.

V

Hoje é tempo de praticar o último dia
de todos os dias que se vai viver.

VI

Não esquecer de levar o coração
no dia do funeral da cabeça.

VII

Milagre é riscar um livro todos os dias
como quem escova os dentes para
não perder a mordida um dia.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

li isto em algum lugar: não há pensamento enquanto não escrevemos

Dicionário deste escrito

escrever é cortar a realidade
realidade é aquilo que estamos acostumados a ver
ver é saber que fazemos imagens sobre tudo o que escutamos e lemos, e quando conhecemos uma nos apegamos como única.

Dissertação

talvez seja preciso cortar a realidade
abrir uns buracos nas imagens
elas estão viciadas-de-dizer-sempre-o-mesmo
atingir o lugar-do-medo-real
lá usar o estilete que dá a cada um o seu estilo

ter estilo é isso: cortar a gola da camisa porque temos alergia no pescoço

ou ainda

chupar a mexerica no quintal
fazendo-se presente
o antes do compromisso.