segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Sobre Cárceres


Num diálogo entre Elisabeth Roudinesco e Jacques Derrida, publicado no Brasil pela editora Jorge Zahar Editor no ano de 2004 (p. 124-126), lê-se:

Elisabeth Roudinesco: Como Mandela fez para não ficar louco depois de vinte e sete anos de prisão? Esta é uma das minhas grandes interrogações. Como fez para não se permitir encerrar na temporalidade imóvel do fenômeno carcerário?

Jacques Derrida: A pergunta também me persegue. Como conseguiu resistir? Para responder a tal exceção, podemos seguir e ver várias linhas se cruzarem. O próprio Mandela declara sua divida filial: a imagem do pai gravada nele desde a mais tenra infância, como uma lei branda e inflexível, a educação recebida da mãe. Dei também atenção, evidentemente, nas sessões do seminário que lhe dediquei, ao episódio da circuncisão, que ele descreve em detalhe nas suas Memórias. Na tradição xosa, a pessoa só se torna homem depois da realização desse rito, à idade de dezesseis anos. Assim, foi na sua herança psico-fantasística que o indivíduo Nelson Mandela (sobrenome sobre o qual conta como lhe foi dado na escola) foi obrigado a descobrir essa força fora do comum. O campo está livre para uma análise do caso pessoal. Um capital psíquico deve ter se constituído no nascimento ou na sua infância, e se determinado através de todas as características que conhecemos desse herói político que espantou o mundo e sem o qual mal podemos imaginar a história da África do Sul nesses últimos cinquenta anos. Mas uma vez que dissemos isto, tentando inclusive explicar assim uma constituição física excepcional é preciso analisar toda essa história política, ali onde foi e permanece maior que esse grande homem, e mais forte que sua força. 
Aliás Mandela se exprimiu longamente a esse respeito: sobre sua infância feliz, seus anos de aprendizagem, o exercício do seu ofício de advogado e sobre a maneira como se inscreveu, engajou na tempestade desse devir politico, nas lutas que trabalham o corpo da África do Sul desde o início do século, antes mesmo da instauração oficial do apharteid e do racismo de Estado. Na sua juventude participara de movimentos bastante organizados de protesto contra a opressão, movimentos aos quais estavam misturados brancos, cristãos ou judeus, e gente da Igreja. Durante esse período de sua vida, antes do grande processo durante o qual fez sua própria defesa, Mandela não era ameaçado nem na sua vida nem na sua autoridade. As coisas se tornaram terríveis para ela quando ficou encarcerado por um longo período de tempo. Também nesse caso é preciso levar em conta a diacronia de uma existência: o aprisionamento era decerto severo, às vezes desumano, mas eram possíveis contatos com o exterior e suas condições de detenção mudaram ao longo dos anos, sobretudo final. 
Algum tempo antes de sua libertação, em 1990, quando se esboçavam as primeiras negociações, as condições de prisão foram abrandadas. Os contatos com o exterior lhe permitiram sobreviver durante esse longo período carcerário, e as imagens que lhe chegavam do estrangeiro o ajudavam a prosseguir a luta. Dito isto, continuamos pasmos diante da estatura desse homem, diante do que mais que nunca podemos chamar sua grandeza. É também um homem grande, sorridente, atraente, sedutor provavelmente. 
Encontrei Mandela na cada dele e ele próprio me explicou isso. Conheceu momentos terríveis mas, ao mesmo tempo, conseguira instituir uma espécie de universidade na prisão, com uma dezena de presos políticos que se ensinavam uns aos outros e organizavam verdadeiros cursos.
Quando o vi há dois anos, já estava com mais de oitenta anos acabava de se casar de novo e parecia feliz como rapaz no limiar de uma nova vida. Alguns instantes antes do nosso encontro, recebera Yasser Arafat durante três ou quatro horas (helicópteros, polícia, guardas do corpo, grande pompa etc). Permanecia brejeiro, bem disposto e bem-humorado, como se estivesse começando sua jornada, pronto a falar de tudo, da prisão mas também da França, queixando-se de brincadeira que não podia mais decidir sozinho sobre suas viagens (“Nada mais de liberdade de movimento, estou na prisão agora, e eis o meu carcereiro, disse designando seu principal colaborador”). Também me pediu notícias de Danielle Mitterrand. E depois: “Sartre ainda está vivo?”

sábado, 5 de janeiro de 2019

Sentado na porta de casa com Ângela Pappiani escutei das poças de chuva dos velhos indígenas:

"o povo ancestral é muito inteligente, tem boa memória"____________________________________

Tinha muita saudade e começava a cantar ou tinha o coração partido pela ausência do Outro.

De onde nascem as palavras criadoras? - perguntou a laranja à faca.

- A palavra - escuta! - a palavra é um sopro que passa pelo corpo e se transforma em manifestação de pensamento. Continuou assim: - Emite a palavra e ela se transforma na coisa dita.

Sim. Sua maneira de estar no mundo sempre se realiza na relação com o MUNDO, as coisas e as pessoas.

Você consegue ver a olho nu o que está vivo e sempre se renovando?

O que precisamos esquecer para voltar a lembrar?