sexta-feira, 31 de agosto de 2012

escuta

O homem estava a sair de casa para mais um dia de trabalho:
- "Bom trabalho, SSSSSSEEEEEEUUUUUU Júlio". - foi como escutou.

A mulher era negra e estava em pé sobre os ombros de outra negra, de outra negra, de uma negra mais negra que ela, de outra que usava manto, de outra que usava farrapos, de outra nua, de outra vestida como rainha.

Escutei (ou foi o homem que estou a criar? - ato falho!) um som de corrente sendo puxada em ruas feitas com paralelepípedos.

A negra, de ancestralidade enraizada, dizia agora:
- "Seu".

Eu era meu? E ela não era dela? - pensou o homem arrancando uma espinha no canto do nariz.

O "seu" que a língua obriga a dizer é possessivo.
Duzentos anos depois de Iaiá assinar a missiva, o homem não sabia como continuar o dia.

Será que o homem pertencia mesmo a si mesmo?

(pensou nos grilos dentro de gavetas que deixam amarelar papéis até que digam "sois grileiro")

Mão-ciparam a terra.
- Há uma mão sobre a negra. - pensei ou pensou.

O homem foi até o armário de remédios e não encontrou nenhuma droga que amenizasse a sujeição forçada a seus semelhantes.

Não há mais nada a fazer
Senão:
e-mão-cipar a língua de tamanha violência.


quinta-feira, 30 de agosto de 2012

pontos de fuga

I
a alma não pensa sem imagem

II
trabalhar cansa

III
quando a inteligência não está à vontade, toda a alma está doente

IV
trabalhar com os problemas técnicos é procurar meios para um fim já suposto

V
a vontade delibera uma orientação: sempre

VI
liberdade (se existe) é deixar para os vermes a propaganda e a necessidade obsessiva de influenciar o mundo, as coisas, a natureza e as pessoas com a nossa opinião.



caminhos deste texto:

A. alma como ânima ou movimento das emoções, alguma coisa que é animada.

B. Simone Weil deu-me a mão hoje pela manhã, caminhamos pelo parque perto de casa. Ela estava com o corpo sujo de terra.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Tradução 1

O mistério não tem dois extremos:
tem um.
O único extremo do mistério está no centro
do nosso próprio coração.

Porém,
não deixaremos nunca de buscar o outro extremo,
o extremo que não existe.

(minha própria língua traindo a poesia vertical de Roberto Juarroz)