sexta-feira, 31 de agosto de 2012

escuta

O homem estava a sair de casa para mais um dia de trabalho:
- "Bom trabalho, SSSSSSEEEEEEUUUUUU Júlio". - foi como escutou.

A mulher era negra e estava em pé sobre os ombros de outra negra, de outra negra, de uma negra mais negra que ela, de outra que usava manto, de outra que usava farrapos, de outra nua, de outra vestida como rainha.

Escutei (ou foi o homem que estou a criar? - ato falho!) um som de corrente sendo puxada em ruas feitas com paralelepípedos.

A negra, de ancestralidade enraizada, dizia agora:
- "Seu".

Eu era meu? E ela não era dela? - pensou o homem arrancando uma espinha no canto do nariz.

O "seu" que a língua obriga a dizer é possessivo.
Duzentos anos depois de Iaiá assinar a missiva, o homem não sabia como continuar o dia.

Será que o homem pertencia mesmo a si mesmo?

(pensou nos grilos dentro de gavetas que deixam amarelar papéis até que digam "sois grileiro")

Mão-ciparam a terra.
- Há uma mão sobre a negra. - pensei ou pensou.

O homem foi até o armário de remédios e não encontrou nenhuma droga que amenizasse a sujeição forçada a seus semelhantes.

Não há mais nada a fazer
Senão:
e-mão-cipar a língua de tamanha violência.


Um comentário:

  1. Adorei, estou percebendo em mim um momento de
    e-mão-cipa-ção, olhei e lavei meus olhos, obrigada

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