quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

São Paulo, 09 de dezembro, Pequeno conto.


O homem entra na terceira porta à esquerda, em primeira pessoa:
- Estive cansado. Estive com dores na estrutura. Os dentes estiveram a doer. Estive a abrir os olhos na rua escura. Estive a lavar o rosto pela manhã com o rio cansado de pés sujos. Estive muitos anos sem saber que sou todos.

O homem fecha a porta e senta-se na beira da cama da velha, também em primeira pessoa:
- Aos cinqüenta, falo sem parar, ouço sem freios, olho tudo, toco tudo, porque estou no nascimento primitivo, sem refinações europeias.

A velha, ainda deitada, levanta um dedo e diz, em segunda pessoa:
- Tu és quase um rude diante dos que têm mulheres oficiais, casas na praia, bons cargos, repuxes nas peles, distrações.

(Será uma acusação? – pergunta uma voz vinda de fora do texto. Parece não caber naquele corpo que a voz forasteira está a imaginar. – constata o escritor.)

O homem levanta-se e vai até a janela, olha o marceneiro a serrar mogno, em terceira pessoa:
- Pode parecer ressentimento, mas confesso que é sentimento. (Silêncio). Ele sente apenas.

A velha solta os olhos na direção do homem, estão em duas pessoas:
- Não há nada bonito?
- Tudo isto é. Encostei o corpo no mundo e por isso sinto.

A velha vira-se de lado e olha a parede (continuam em duas pessoas):
- Sei.
- Quanto menos eu sei, abraço melhor.

A velha suspira fundo e diz o pressentimento _________________________________.
- Falta pouco para o desmanche da (minha) carne.

O homem corre até a cama e vira a velha em sua direção:
- Este é o ponto: matar este que está nascendo. Este é o ponto. Morrer é desmanchar o que está nascendo, por isso quero escrever este livro. Espere. Você precisa estar nesta cama. Quero que você veja o nascer dos filhos, quero ensinar e ser amado. Quero ser lembrado. Por este que está nascendo com sangue e fúria, não deixe este mundo.

A velha abre o sorriso calmo de toda a vida. Conta uma história:
- Quem sabe os dias sejam apenas para deitar sobre uma pedra e deixá-la flutuar como nos desenhos que você fazia nos azulejos da casa amarela.




O homem dá um beijo na testa da velha, em primeira pessoa, olha o que ela faz, em segunda pessoa, e a deixa... (a morrer de saudade da sua infância, em terceira pessoa).