Músculo

Tensão muscular

I

Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que merece, uma rua deserta com gente nele. Já este modo de dizer qualquer outra coisa, e efetivamente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde não passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam nela como se fosse deserta. Não há dificuldade em compreender isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível para quem não conheça mais que um burro. As sensações ajustam-se, dentro de nós a certos graus e tipos de compreensão delas. Há maneiras de entender que têm maneiras de ser entendidas. Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de viver que só me não parece insuportável porque de fato a suporto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os poros.

Fernando Pessoa

[Livro do Desassossego]


Metáfora

Mas repararam vocês no que é o metafórico? Tomemos como exemplo, para que fique mais claro, a metáfora mais simples, mais antiga e menos seleta, a que consiste em dizer que a face de uma moça é como uma rosa. Geralmente a palavra "ser" significa a realidade. Se digo que a neve é branca dou a entender que a realidade neve possui realmente essa cor real que chamamos branco. Mas o que significa ser quando digo que a face de uma mocinha é uma rosa?
Talvez vocês recordem o delicioso conto de Wells que se intitula "O homem que podia fazer milagres". De noite, numa taberna de Londres, dois homens quaisquer, já afetados pelos pesados vapores da cerveja, discutem fastidiosamente sobre se há ou não milagres. Um crê neles, o outro não. E em certo instante o incrédulo exclama: "Isso é como se eu dissesse agora que esta luz se apague e a luz se apagasse!"; e eis que uma vez pronunciadas estas palavras, a luz, efetivamente, se apaga. E desde aquele momento tudo o que aquele homem diz ou simplesmente pensa, mesmo sem querer dizê-lo formalmente, acontece, se realiza. A série de aventuras e conflitos que este poder, tão mágico como involuntário, lhe proporciona constitui a matéria do conto. Por fim um agente da Polícia o persegue tão de perto que o pobre homem pensa: "Por que não se vai ao diabo este polícia!". E, com efeito, o polícia se vai ao diabo.
Mas suponham vocês que algo parecido acontecesse ao humilde apaixonado cuja imaginação não chega a mais do que a dizer da face da donzela amada que é uma rosa - portanto, que de pronto aquela face se convertesse realmente numa rosa. Que espanto! Não é certo? O infeliz se angustiaria, ele não havia querido dizer isso, era pura brincadeira - o ser rosa a face era apenas metafórico; não era um ser no sentido real, mas um ser no sentido de irreal. Por isso, a expressão mais usada na metáfora emprega o como e diz: a face é como uma rosa. O ser como não é o ser real, senão um como-ser, um quase-ser: é a irrealidade como tal.
Perfeitamente; mas então, o que é que sucede quando sucede uma metáfora? Pois sucede isto: há a face real e há a rosa real. Ao metaforizar ou metamorfosear ou transformar a face em rosa é preciso que a face deixe de ser realmente face e que a rosa deixe de ser realmente rosa. As duas realidades, ao serem identificadas na metáfora, chocam-se uma com a outra, se anulam reciprocamente, se neutralizam, se desmaterializam. A metáfora vem a ser a bomba atômica mental. OS resultados da aniquilação dessas duas realidades são precisamente essa nova e maravilhosa coisa que é a irrealidade. Fazendo chocarem-se e anularem-se realidades obtemos prodigiosamente figuras que não existem em nenhum mundo. Por exemplo, para compensar a miséria da velha metáfora que me serviu de exemplo recordarei essa outra belíssima de um recente poeta catalão. Falando de um cipreste direi que "o cipreste é como o espectro de uma chama morta".

José Ortega y Gasset
[In: A Ideia do Teatro, editora Perspectiva, São Paulo, 1991, p. 37-38]