quarta-feira, 28 de março de 2012

Ouvir os sonhos

Haviam prateleiras na feira.
A mulher vendia galinhas enquanto gritava para todos ouvirem:
- Pahang.
O homem, virado de bruços, mordia os dentes sonolentos e rangidos.
A mulher continuava a venda na grande feira:
- Pahang, homem, pahang.
O homem olhava de olhos fechados para as prateleiras,
de livros.
O homem enxergava galinhas, muitas galinhas ao invés de livros.
A mulher continuava a "Grande Venda".
Talvez o homem, enquanto sonhava, arrancava
A grande venda dos dias ocupados.
Despertou no cacarejar daquelas palavras:
- Pahang, homem, pahang.

Fundo de cena: O homem estava sonhando. Sonhou que uma grande amiga vendia galinhas numa feira livre. As galinhas eram vendidas expostas em prateleiras de livros. A mulher dizia Pahang sem parar. O homem despertou e procurou nos dicionários universais a palavra. Lá encontrou:

Pahang - o maior Estado da Malásia; significa, entre outras coisas, Terra da Tranquilidade.

Ao ouvir o sonho o homem dormiu intranquilo-de-pensar: a vontade de interpretar a vida nos arranca da vida.

terça-feira, 27 de março de 2012

Os Sete Desaforismos IX

I

Há uma palavra que consola:
os mortos não acabam de vez.

II

A delicadeza e o cuidado
são descontinuidades da vida.

III

Tudo aquilo que não se regenera
geralmente se degenera.

IV

Há pessoas que quando dizem aliviam
e outras que corroem.

V

A tristeza é a língua da incompreensão.

VI

A certeza é um nível alto de alienação.

VII

Wagner compunha como uma vaca produzindo leite.

segunda-feira, 26 de março de 2012

O mal-estar da poesia

Tinham os corpo escondidos em cemitérios, hospitais, distantes dos olhos-de-ver


As Três Idades da Mulher (1905) - Gustav Klimt


Não queriam que a velhice encostasse na eternidade, então escondiam os corpos, e todos os imãs das geladeiras das casas, diziam apenas: como é poético nascer.



A velha do quadro, procurava abrigo em alguma casa, mas as portas estavam fechadas para o natural.


A poesia estava mal disposta na oração.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Navegar Meninos V

Naquele lugar, todas as pessoas, antes de dormir, davam boa noite às pessoas que amavam, olhavam para a lua e se deitavam em suas camas. Inclusive as crianças. Mas, naquele dia, a menina deu boa noite aos pais, olhou para a lua, deitou-se na cama e... depois de algum tempo-antes-do-sonhar, escutou, lá longe, muito longe, um som esquisito e novo. Blundundungloptoc. A menina ficou toda arrepiada e cobriu-se inteira, até a cabeça, com o lençol amarelo. E o som persistia. Blundundungloptoc. Sem saber o que fazer, a menina foi, lentamente, tirando o lençol da cabeça, mas não parava de ouvir aquele som. Blundundungloptoc. Olhou para os lados, e tudo estava escuro, ajoelhou-se devagar na cama e olhou, através da vidraça do quarto, a lua. A lua estava coberta por uma nuvem escura. Seria por isso que a noite era tão escura dentro do quarto? Acho que a menina pensou nisso. Mas o medo era tanto, mas tanto que resolveu sair do quarto. Correu na direção da porta e abriu-a devagarzinho, o ranger lento da porta parecia um lobo a uivar noites cheias. À porta, viu diante de si um corredor enorme que levava até a sala de estar, no meio do caminho ficava o quarto dos pais. Como estava muito escuro, a menina foi apoiando-se nas paredes agarrada ao lençol amarelo. Ela percebeu que a porta do quarto dos pais estava entreaberta e foi entrando, quando olhou para a cama toda arrumada, com almofadas coloridas: eles não estavam ali. A menina deu um grito de medo e correu para a sala em disparada. Quando lá chegou avistou, no meio da sala, uma caixa de papelão enorme. Era quase do tamanho da sala de estar. A caixa além de tudo era alta. Estariam seus pais fazendo uma surpresa? A menina subiu no sofá e nas pontas dos pés conseguiu alcançar a tampa da caixa. Com muita dificuldade abriu a caixa. Qual não foi a sua surpresa: de dentro da caixa saiu aquele som esquisito. Blundundungloptoc. Assustada, a menina caiu sentada no sofá. Olhou para os lados, chamou pelos pais, gritou para que a lua saísse detrás daquela nuvem escura e iluminasse o escuro do medo. Nada. A menina estava sozinha. Ela ficou sentada ali, com as pernas encolhidas e com as palmas das mãos apertadas no rosto. O tempo foi passando, passando. De repente: Sozinha? pensou, então eu tenho medo de quê? De quem?. E pensando, sentindo, o medo tornou-se curiosidade e a menina ficou em pé sobre o sofá, ficou na ponta dos pés e abriu a caixa para ver o que de fato havia lá. Um clarão, apenas um clarão. Naquele momento a menina sentiu um beijo na testa e um som suave que foi envolvendo-a por inteiro. Bom dia, meu bem. O sol está radiante. Era a mãe que chamava a menina para um tempo-depois-do-sonhar.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Dito de outro modo: ARTISTA

Transmissor da mitologia.

(escutei outro dia alguém falar de Blanchot, dizia: profeta é aquele que atualiza o real)

pensei: F5 no mundo contemporâneo.

Transmitir é emitir em trânsito, no movimento, não sabendo ainda a parada da verdade.

Dica: quando você encontrar um artista pela frente, mas um artista mesmo__________________

o que é um artista mesmo - perguntou o grilo que estava sobre a folha.

É aquele que te prende de verdade, sabe? Aquele que você se obriga a continuar...

Dica 2: quando você encontrar, por exemplo, uma literatura que o prenda de verdade, vá fundo neste cara que escreveu este troço, leia tudo dele, depois leia o que ele lê, pode ser que você tenha encontrado o Xamã do seu tempo.

Sem mistificações, intelectuais e céticos do meu mundo: o que estou dizendo é informática F5.

Atualizações.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Os Sete Desaforismos VIII

I

Prestar atenção na inflação de preposições
sem interesse algum.

II

As palavras dependem das bocas que as pronunciam.

III

A morte faz o corpo sofrer uma contradição:
o outro está e não está aqui.

IV

Quando rio entre lágrimas, o coração pode navegar
naquele mar.

V

Há sempre nas gentes um que continua a navegar
e um outro que está à deriva.

VI

Gostar mesmo de alguma coisa é tocá-la,
do contrário uma ideia te tocou.

VII

Só é possível comer uma carne assada com quem amamos
se o animal e o dinheiro forem anônimos.

terça-feira, 20 de março de 2012

Palavras Pisoteadas IV

Perdoar

Per = prefixo, do latim, que serve para dar ideia de plenitude.

Doar = doar mesmo.

Moral da história: abrir a caixa preta de um naufrágio estranho à humanidade (trancado há milênios) derreter o estanho que lacra o tesouro que salvaria muitos da fome, doar tudo o que há na caixa até o ponto do vazio da caixa flutuar no nível mais superficial do oceano, lá derivar sobre a caixa leve-de-si, sabendo que outros tantos poderão também trazer suas doações para salvá-lo de seus naufrágios.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Dito de outro modo: FÉ

O homem olha para a santa,
outro beija a ponta da flor
a mulher canta a pia
a velha escova a dentadura
a criança costura a poça



outra mulher faz tranças na filha que ainda não nasceu

outro homem escreve palavras no livro caixa


as crianças cutucam o abacate com vara curta

os velhos balançam a cadeira até o amanhecer

domingo, 18 de março de 2012

Os Sete Desaforismos VII

I

Ter um lugar na casa, de preferência térrea,
para esperar que as coisas se apresentem.

II

Não ser um colocador de conteúdo
nas formas que aparecem.

III

Quando alguma coisa te olhar,
piscar para ela e, no escuro do pisco distraído,
deixar-se envolver pela coisa.

IV

Perder hoje a noção de que
o centro da existência somos nós.

V

Quando alguém morre, o que morre
é a nossa possibilidade de compartilhar.

VI

A gente raramente está no lugar que a gente está.

VII

Hoje é dia de abrir a janela e se interessar
pelo "bêbado louco".
Marca da beleza-bárbara desta civilização.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Os Sete Desaforismos VI

I

Ser do tamanho do que se escuta
para se adaptar aos móveis da casa.

II

Lembrar todos os dias que atrás do espelho
há tinta anti-reflexo.

III

Um pingo de chuva pode cair numa poça,
num rio, no mar, na montanha, ou
na calha de um telhado antigo.

IV

Nada se inventa
colhe-se no coração ou na barriga.

V

Hoje é dia de caçar urgências.

VI

O que cada um está buscando agora
é saber em nome do que.

VII

Quando uma lágrima escorre pela língua
é possível beijar um estranho.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Desrazão [ou aqui não há narrativa]

Um coelho segredou buracos:

Julgo de olhos virados em temperatura
a cabeça cortada debaixo dos braços
Aquelas formas botânicas dos servos.

O portão grená está a dizer-lhes:
Tudo o que encosta acorda de eternidade
Ao longe, explosão nos céus.

Ainda ninguém crê como Tomás
Não têm nada o que lhes interesse
Um café? No pátio.

A porta está trancada
Onde estão as chaves?
A chave, Antígona. A chave. Depressa.

O seu defeito é não saber o feito
O risco é sua arte oratória,
mas esqueceu-se de orar ontem a noite.

Todos os presentes julgam o que de fato está.
Isto é fato.
Os livros das comunidades escrevem
com as mãos na enxada.

O coelho continua:

Ataco os infames incrédulos.
Essa gente ouve explosões
que não são de fato loucura.

Um príncipe está só, em pé,
Num pensamento que julga.

A chave do pensamento
escorre leite no fogão.

Desculpe,
As vacas querem batalhas
e seu leite pede um café
após a refeição.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Os Sete Desaforismos V

I

O inconsciente trabalha incansável na escuridão,
acordado ou dormindo.

II

Uma sensação atroz é ter que usar
metáfora para dizer "um martelo".

III

Ler é dar existência ao que se lê.

IV

O desejo é tão violento que
racha uma ideia ao meio.

V

O atento tem dificuldade com a palavra compreensão.

VI

A memória só é ameaçada pelas falsas lembranças
que insistem em nos invadir.

VII

A confiança é o fundamento da conversa.

terça-feira, 13 de março de 2012

Palavras Pisoteadas III

Confusão

Com = estar em companhia, partilhar, não ficar sozinho, ser julgado, olhar para o lado, ter com quem conversar, saber-se junto, levar um chute na bunda, saber-se para além da própria ilha de si, ser olhado, ser amado, não ser a melhor das criaturas, amar, não ter medo da exposição.

Fusão = misturar-se.

Desdobramento pessoal:

Confuso

Com + fuso

Fuso = Agulha cônica em torno da qual se enrola o fio


Moral da história: no misturar-se com os fios que saem das bocas daqueles que estão ao nosso lado - amados e esquisitos - vamos fiando rendas com buracos outros, fendas no tecido bem tramado em que estávamos acomodados costurando certezas no manto que enrolava o cadáver ainda com a impressão de estar vivo.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Navegar Meninos IV

O tempo era de máscaras e todos que viviam naquele lugar esperavam ansiosos Aquela-Época-do-Ano. No templo do saber, homens e mulheres, vestidos de conhecimento, paravam seus afazeres sérios, assumiam novas alegrias e divertiam-se como e com as crianças entre confetes e espumas flutuantes. A menina não. Escondia-se no canto atrás do último livro-fantasia e inventava o seu mundo, um mundo habitado por seres que não tinham que fingir alegria: seres de tristeza-alegre. Nos lugares que a menina inventava, podia-se ser tudo. – Menina. O que está fazendo sentada, enquanto todos brincam suas máscaras-serpentinas? – perguntou A-Que-Mais-Poder-Tinha, do templo do saber. - Nada. – respondia a menina com olhos-de-susto. O que a menina mais tinha medo era ter que abandonar aquele mundo que estava aparecendo no mundo e voltar a conviver com aquelas alegrias-de-medo. A menina, puxada pelos braços, foi levada ao grande salão-alegria. - Divirta-se querida. – dizia às gargalhadas-terror a Mulher. A menina rodava em torno do salão, enquanto todos pulavam-músicas-de-época-feliz e olhavam para o seu rosto-susto. Ela encolhia os braços: queria fugir dali. Até que enxergou no canto do salão um menino de orelhas grandes. Foi aproximando-se devagarzinho. Parecia que ninguém o enxergava. Ele estava sentado de cócoras com os braços cruzados e a cabeça enfiada no peito. Quando a menina chegou bem perto, ele levantou a cabeça. - Você não tem máscara. – suspirou a menina-alegria. O menino emitiu dois ou três sons. Foi o suficiente para a menina aumentar o mundo que começava a aparecer no mundo. O salão foi desaparecendo com as lágrimas-surpresa que embaçavam os seus olhos. Entre marchas-confetes, serpentinas-pulos, a menina e o menino, em silêncio, viveram felizes Aquela-Época-do-Ano.

domingo, 11 de março de 2012

Palavras Pisoteadas II

Concessão

Com = estar em companhia, partilhar, não ficar sozinho, ser julgado, olhar para o lado, ter com quem conversar, saber-se junto, levar um chute na bunda, saber-se para além da própria ilha de si, ser olhado, ser amado, não ser a melhor das criaturas, amar, não ter medo da exposição.

Cessão = abrir mão.

Olhar da direita
Explorar o máximo até tirar a última moeda do bolso.

Olhar da esquerda
Nunca permitir que tal palavra passe pela cabeça.

Olhar do pêndulo
Com sentir. Sentir com. Sem concessão não é possível sentir junto a dor e o prazer que os ventos ventam enquanto a raiz, afunda-se no chão e encontra-se com a água no lençol de dormir água a sonhar com o mar.

Moral da história: O mar é o em que todos são ondas, mesmo na maior das tempestades ou na marola que enjoa.

P.S.
O escritor sabia naquela hora que conceder é diferente de consentir, contudo tramou uma novela dentro de si, puxando fios desajeitados, em busca de salvar a palavra daquela multidão que pisoteava sem dó aquela palavra.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Fraseologia Barroca I

Escuto a frase abaixo e esta esconde-se atrás da cera que insiste em tornar peça de museu todas as coisas que por lá passam:

Primeiro conhecer sua aldeia para poder vencer o mundo.

Estudo 1 - O que as palavras dizem


Primeiro aqui diz respeito à ordem das coisas.

Conhecer aqui diz respeito a ver pela primeira vez e deixar-se atropelar-se pelo novo.

Sua aqui diz respeito às marcas na alma.

Aldeia aqui diz respeito a voltar à região primeva de quando as gentes viviam entre poucos para conhecerem muito.

Para aqui diz respeito à destinação dos atos humanos.

Poder aqui diz respeito à potência para se fazer algo.

Vencer aqui diz respeito a vir a ser.

O aqui diz respeito ao artigo.

Mundo aqui diz respeito a tudo e a nada.


Estudo 2 - De onde as palavras dizem

Aqui é igual ao lugar de onde se fala

Diz é igual ao que vibra antes daquilo que significa

Respeito é igual (como dito em outra ocasião) ao res do peito, dito de outro modo, às coisas que moram no peito ou no coração.

Estudo 3 - Como as palavras dizem

É é é.

Igual é igual.

Estudo 4 - O é das palavras

Fundamento discutido desde o surgimento do primeiro homo sapiens.

Estudo 5

Se houvesse seria metafísica.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Os Sete Desaforismos IV

I

Quando tudo é demasiadamente anônimo
ninguém se fala no elevador.

II

As andorinhas dão voos rasantes
para beber da fonte.

III

Sempre que possível é melhor ler
os fundadores.

IV

O segredo para alguém ser entediante
é dizer tudo.

V

O comerciante só caminha quando fecha a loja.

VI

Quando alguém fica muito livre,
não tem tempo pra nada.

VII

O míope olha no limite da armação.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Navegar Meninos III

Andando por uma rua de girassóis-olhos-para-o-céu o menino queria chegar lá. Todos que por ele passavam faziam a mesma pergunta: para onde você vai. O menino respondia: sei lá. Quanto mais andava por ali mais sentia que aquele caminho continuava a exigir dele um caminhar para lá. Ninguém daquele lugar-de-fazer-coisas-de-fazer-coisas-e-nada-nunca pensava em lá, só queriam saber do aqui e de si. E o menino não tinha si e só pensava sei lá. Quando perguntavam para o menino para quê fazer o que ele fazia ele respondia: sei lá. O menino pensava que quem ficava parado dizendo o saber tudo daqui adoentava de nó nas pernas e podia cair de tropeço em desgosto. O menino reparou-se duvidoso daqui ao ver uma minhoca indo para lá e não parada aqui ziguezagueando inutilidades para a terra. Os outros-todos receosos de dizer o sei lá que sentiam, vendo o menino em seu sei lá profundo enxergaram o silêncio de aquietar-se entre girassóis e olharam para o céu. Viram um passarinho dando gosto para o acaso e sei lá. O não sei daqui de todos de repente quis saber lá. O menino deitou saudade por aquilo que só saberia quando lá chegar.

terça-feira, 6 de março de 2012

Palavras Pisoteadas I

Transtorno

Trans - trânsito
Torno - aquilo que faz girar, voltar

Definição: Alguém em transtorno é alguém que está se voltando para outro ponto que não aquele que sempre esteve.

Moral da história: Tornar-se outro é igual a transtornar-se

segunda-feira, 5 de março de 2012

Navegar Meninos II

Primeiro dia de aula. O menino sentava-se na menor pedra-musgo. O mestre em pé sobre a grama professava palavras-adjetivo que se amontoavam pesadas ao seu redor. Todos os outros meninos também, sentados em suas pedras-silêncio, enquanto ouviam o mestre, esperavam o pedido-mesmo de todos os anos. Meninos do Brejo-de-Cá, quero que todos escrevam uma redação sobre suas férias de Lá. Todos tratavam de pegar suas pontas de carvão e escrever nas pedras. Mas o menino, não. Empacou. Não quis escrever sobre o que não vivera e pensou para si, dentro de si: Nada. O menino olhou para o lado e para o mestre que recusava a sinceridade do não-ter-o-que-dizer. O menino então viu um caramujo que trazia uma casa-vida sobre si, leve sobre a grama. E passou a escrever. Escreveu tanto, que a sua pedra, de pequena, parecia maior. No dia seguinte, o mestre pediu para cada qual ler a sua redação. Os meninos-todos liam palavras-idem, dias de sol, noites acordadas em folia, gente que falava alto, castelos de areia. Hora do menino da pedra pequena-cheia. Terminou assim: ... Sim. Não gosto de esconder-me por detrás das palavras-de-qualidade. Prefiro continuar a ser grama e a sentir o substantivo do caramujo.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Derivar Meninos V

Vivia vermelha. Tudo estava sempre de cabeça-para-baixo. O único remédio era abrir um buraco no fundo do quintal e enterrar a cabeça. Quando alguém-cabeça-para-baixo olhava para ela: nossa. Ficava beterraba. Quando ela não sabia responder uma pergunta: nossa. As bochechas ferviam São João. Ela então corria para o fundo do quintal da casa, abria um buraco e colocava a cabeça ali dentro até tudo voltar de dentro. Um dia, caminhando por uma rua de árvores de bicicletas azuis ela viu um buraco aberto bem no meio do passeio. Aproximou-se com vagar daquele buraco e puft. Colocou a cabeça ali dentro. Quando abriu os olhos: nossa. Viu cabeças enfiadas em buracos-outros e o mais engraçado é que era tudo gente-de-cabeça-para-cima: nossa. Eram meninas, meninos, gente grande e pequena, alta e baixa, magra e gorda e todo mundo cabeça-para-cima. Espantou-se um tanto que pensou felicidade dentro de si.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Os Sete Desaforismos III

I

Crescer lá fora, no meio da floresta,
para viver outro tipo de realidade.


II

Preparar-se em segredo para a morte.


III

O que é preciso: que dor e alegria
estejam no centro.


IV

Retornar da solidão e da tristeza da infância.


V

Ser de outro lugar e haver outro lugar no Ser.


VI

A espécie humana não suporta muita realidade.


VII

Abrir como uma flor quando se sente simpatia e afeição.

Ser atraente quando se abre.