O homem entra na terceira porta à
esquerda, em primeira pessoa:
- Estive cansado. Estive com dores na estrutura. Os dentes estiveram a
doer. Estive a abrir os olhos na rua escura. Estive a lavar o rosto pela manhã
com o rio cansado de pés sujos. Estive muitos anos sem saber que sou todos.
O homem fecha a porta e senta-se
na beira da cama da velha, também em primeira pessoa:
- Aos cinqüenta, falo sem parar, ouço sem freios, olho tudo, toco tudo,
porque estou no nascimento primitivo, sem refinações europeias.
A velha, ainda deitada, levanta
um dedo e diz, em segunda pessoa:
- Tu és quase um rude diante dos que têm mulheres oficiais, casas na
praia, bons cargos, repuxes nas peles, distrações.
(Será uma acusação? – pergunta uma voz vinda de fora do texto. Parece não caber naquele corpo que a voz
forasteira está a imaginar. – constata o escritor.)
O homem levanta-se e vai até a
janela, olha o marceneiro a serrar mogno, em terceira pessoa:
- Pode parecer ressentimento, mas confesso que é sentimento. (Silêncio).
Ele sente apenas.
A velha solta os olhos na direção
do homem, estão em duas pessoas:
- Não há nada bonito?
- Tudo isto é. Encostei o corpo no mundo e por isso sinto.
A velha vira-se de lado e olha a
parede (continuam em duas pessoas):
- Sei.
- Quanto menos eu sei, abraço melhor.
A velha suspira fundo e diz o
pressentimento _________________________________.
- Falta pouco para o desmanche da (minha) carne.
O homem corre até a cama e vira a
velha em sua direção:
- Este é o ponto: matar este que está nascendo. Este é o ponto. Morrer
é desmanchar o que está nascendo, por isso quero escrever este livro. Espere.
Você precisa estar nesta cama. Quero que você veja o nascer dos filhos, quero
ensinar e ser amado. Quero ser lembrado. Por este que está nascendo com sangue
e fúria, não deixe este mundo.
A velha abre o sorriso calmo de
toda a vida. Conta uma história:
- Quem sabe os dias sejam apenas para deitar sobre uma pedra e deixá-la
flutuar como nos desenhos que você fazia nos azulejos da casa amarela.
O homem dá um beijo na testa da
velha, em primeira pessoa, olha o que ela faz, em segunda pessoa, e a deixa... (a
morrer de saudade da sua infância, em terceira pessoa).